As dificuldades de efetivação da democracia: os desafios da resistência à mudança política no Brasil na obra de Celso Furtado

AutorMaria José de Rezende
Páginas224-245

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A resistência à mudança social a partir da década de 1950

Os estudos* sobre o modo de processamento das mudanças sociais no Brasil revelam as múltiplas dificuldades de efetivação de procedimentos, de atos e de ações que apontam na direção da viabilização da democracia no País. Embora haja vários intérpretes do Brasil (Euclides da Cunha, Manoel Bomfim, Fernando de Azevedo, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro) que se ativeram ao problema do emperramento social e político brasileiro, esta análise restringe-se às discussões de Celso Furtado, em razão de suas reflexões sobre o modo de sedimentação de um amplo processo de resistência a mudanças capazes de bloquear as ações perpetuadoras de um modo de governar oligárquico, personalista e clientelista. Tais ações são características essencialmente definidoras de um padrão de domínio que tem eliminado, século após século, década após década, a possibilidade de emergência de uma sociedade fundada na publicização das relações sociais e na construção de agentes capazes de balizar a ação dos setores dirigentes.

Nos escritos de Celso Furtado, as ciências sociais brasileiras encontram subsídios para problematizar as impossibilidades de efetivação da democracia no Brasil, as quais são oriundas do subdesenvolvimentoPage 225como forma de organização social potencializadora de um padrão de domínio estruturador de relações de poder, de mando e de decisão, capaz de refutar e controlar todos os processos de mudança que se voltam aos interesses coletivos da nação. Suas reflexões, por um lado, ao privilegiar os processos de resistência à mudança, elucidam o modo de processamento das ações políticas dos setores preponderantes e, por outro, ao destacar a atuação dos diversos outros grupos sociais, demonstram como se configuraram, após meados do século XX, as ações dos setores que se empenharam em adentrar a arena política e balizar as ações dos estratos que resistiam às mudanças (políticas, sociais, econômicas e culturais) desencadeadas pela urbanização e pela industrialização que se sedimentaram a partir de 1930. As obras sobre o período de 1950 a 1964 são as que mais bem exemplificam esse empenho em mapear as ações dos inúmeros setores preponderantes e não-preponderantes na geração, tanto de impulsos quanto de controle das mudanças sociais.

Suas discussões acerca do processo de resistência à mudança que floresceram principalmente na década de 1950 fornecem elementos essenciais para uma compreensão sociológica das ações empreendidas pelos segmentos oligárquicos como resposta aos avanços democráticos que se efetivaram naquele momento. As transmutações que ocorreram na sociedade brasileira que se urbanizava e se industrializava potencializaram as ações de contenção, de controle e de rechaçamento das reformas de base, que tenderiam a aprofundar as modificações substantivamente redefinidoras do País nas diversas esferas da vida social.

As análises de Celso Furtado oferecem subsídios para uma teoria social da mudança, uma vez que ele desenvolve ampla reflexão sobre os processos de resistência, nos anos 50 do século XX, dos setores arcaicos (latifundiários, por exemplo), que eram atingidos pela potencialização das lutas sociais e das reivindicações de um número cada vez maior de segmentos da sociedade civil que se empenharam em balizar os processos de mudança política e social em andamento antes de 31 de março de 1964 (FURTADO, 1997; 1997a; 1997b; 1997c).

Ao problematizar teoricamente a resistência dos setores preponderantes, em vista das ações políticas desencadeadas, principalmente no Nordeste do País, Celso Furtado construiu um campo no qual as ciências sociais no Brasil devem ainda colher muitos frutos, no que tange à compreensão da sociedade brasileira. Para que isso ocorra,Page 226faz-se necessário resgatar não somente as questões levantadas por Furtado acerca das ações políticas dos segmentos oligárquicos, mas também as dos demais setores sociais. Se, na década de 1950, ele parecia crer que principalmente os setores ligados aos interesses oligárquicos desencadeavam processos contínuos de rechaçamento da democracia, nas décadas seguintes, ele reviu esse entendimento, o que se deu, principalmente, em razão do apoio dos setores empresariais urbanos ao golpe militar de 1964 2 .

Celso Furtado, em análise recente sobre o período de 1950 a 1964, aponta para alguns equívocos, em seu entendimento anterior, acerca das ações de resistência às mudanças democráticas. Num primeiro momento, ele supunha que elas viriam essencialmente dos setores ligados aos oligarcas. Num segundo, ele verificava que os rechaçamentos a tais mudanças vieram deles também, mas em associação com os empresários urbanos, ou seja, os setores mais modernos da economia industrial, os quais se aliaram aos grupos autoritários e participaram ativamente da consecução e manutenção da ditadura militar no País.

Além dessas questões, Celso Furtado elaborou também uma reflexão minuciosa sobre o papel do Estado nas sociedades subdesenvolvidas. Esse último não se haveria voltado, até então, para a consecução de qualquer projeto nacional que integrasse, de fato, o País. Para vencer tais amarras, era necessário que todas as forças progressistas apoiassem uma mudança social dirigida pelo Estado. A efetivação da democracia no Brasil dependia inteiramente disso, a seu ver.

A reflexão de Celso Furtado sobre a resistência à mudança tem o mérito de trazer à tona a ação das forças sociais que tiveram papel fundamental tanto no processo de impulsionar quanto no de frear e destruir as possibilidades de construção de uma nova reconfiguração social. No que consistia essa última para ele? Consistia em:

[...] um amplo processo de mudança social, todo ele orientado para recuperar o atraso político e abrir espaço a fim de que parcelas crescentes da Page 227 população regional assumissem na plenitude os direitos de cidadania. Verdadeiras mudanças não poderiam vir senão da renovação dos quadros políticos, com o aumento de sua representatividade e a rejeição, para um desvão da história, das velhas oligarquias (FURTADO, 1997d, p.35).

Celso Furtado voltou-se para a compreensão das formas de manifestação dos atrasos políticos no Nordeste brasileiro. Quanto ao restante do País, ele dizia que não se sentia à vontade para opinar. Em Seca e poder , de 1998, ele afirma:

[...] não sei dizer o que é atrasado em São Paulo.

A política representa muito menos para uma região rica do que para uma região como o Nordeste, que depende bastante do governo. A política de um estado como o Rio de Janeiro é muito autônoma, o estado é rico [...]. São Paulo nem se fala. A ação do governo Federal nessas regiões mais desenvolvidas é complementar, não é essencial. Portanto, a responsabilidade maior é com respeito a essas regiões mais pobres. Em regiões subdesenvolvidas como a Amazônia e o Nordeste, a ação do governo é fundamental, porque esses problemas são estruturais. E, tratando-se de problemas estruturais, só a ação política resolve (FURTADO, 1998, p.52).

Deter-se-á este artigo nas discussões de Celso Furtado sobre os aspectos definidores dos atrasos políticos potencializadores da resistência à mudança na região Nordeste, uma vez que, principalmente na década de 1950 e 1960, ele esteve voltado tanto ao combate desses atrasos nessa região, mediante ações postas em andamento pela Operação Nordeste e pela Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste), quanto ao exercício de pesquisar os fundamentos e as conseqüências do atraso político no processo de manutenção de um dado padrão de organização social autoritário, personalista e clientelista que vigia naquela região.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.38, p.223-244, outubro de 2005

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A ação da oligarquia nordestina no processo de resistência à mudança

As análises acerca da resistência à mudança concentram-se, em seus escritos, principalmente no modo de ação política da oligarquia nordestina que, na década de 1950, agia visando a impedir o florescimento tanto de ações governamentais que tentavam industrializar a região, por meio da Sudene, quanto de ações dos setores populares que se empenhavam em desmantelar a estrutura agrária semifeudal ainda prevalecente na esfera política.

Observe-se que Celso Furtado criticava as interpretações assentadas na pressuposição de que o processo de colonização reproduziu no País uma forma de feudalismo. Em Formação econômica do Brasil, cuja primeira edição foi em 1959 , ele defendeu a tese de que desde os primórdios se constituiu aqui um sistema econômico não-autônomo, incapaz de gerar internamente impulsos de crescimento a partir dos excedentes gerados na Colônia, mas totalmente distinto do feudalismo 3 . No entanto, em Dialética do desenvolvimento , ele argumentava que havia até 1930 um sistema político semifeudal no País, chamando a atenção para a necessidade de distinguir a esfera econômica da esfera política, pois, se na primeira não havia sequer resquícios de uma estrutura feudal, na segunda era evidente a existência de relações de pessoalidade e de dependência, que serviam como sustentáculo de um padrão de domínio semelhante ao padrão de domínio vigente no feudalismo.

O desmantelamento desse sistema de poder que se escorava num tipo de mando arcaico ter-se-ia dado, a partir de 1930, em razão da intensificação do desenvolvimento industrial e da agudização das tensões sociais que colocavam em xeque um dado sistema político oligárquico, possuidor ainda de uma margem de ação significativa,Page 229por meio de mecanismos de refutação das pressões das novas forças políticas que ganharam espaço a partir do processo de industrialização e de urbanização 4...

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