O respeito às deliberações do paciente através do consentimento informado

AutorAstrid Heringer
Páginas115-128

Page 115

Introdução

Durante muito tempo, prevaleceu como prática médica a orientação do juramento hipocrático segundo o qual o médico detém liberdade na condução do tratamento do paciente. 1Essa cultura predominou durante séculos, sem que sofresse abalo de qualquer natureza. No entanto, a partir da década de 70 essa relação começa a sofrer transformações, provenientes, sobretudo, dos direitos civis adquiridos pelo paciente, bem como da quantidade de informações que passam a circular e estar disponíveis a todos. Então, conforme Pithan,

[...] a grande mudança cultural no contexto da assistência sanitária ocorre prioritariamente com a promoção da autonomia do paciente, passando-se de uma relação paternalista, em que o médico decidia sozinho, para uma relação de parceria terapêutica, onde o profissional compartilha decisões com aquele que é diretamente afetado por elas 2.

A ideia de consentimento informado passou a ser gestada a partir dos relatos dos horrores cometidos em Nuremberg, posteriormente ao julgamento de diversos criminosos da Segunda Guerra Mundial. Conforme Beauchamp e Childress, não se fala em consentimento informado e nem há um detalhamento da sua função até 1972 3.

Um dos principais marcos na mudança de paradigma entre médico e paciente, bem como da autonomia deste quanto à condução do tratamento, ocorreu a partir da Carta dos direitos dos pacientes, publicada em 1973 pela Associação Americana de Hospitais. A publicação deste documento foi tão emblemática que passou a influenciar a legislação não só dos Estados Unidos, como de outros países. O documento serviu como um elemento de superação da cultura paternalista representada pelo juramento hipocrático, predominante até então. Uma de suas disposições mais relevantes consiste no direito do paciente receber todas as informações sobre o seu estado de saúde e dos tratamentos a serem utilizados antes de qualquer intervenção 4.

Estas transformações nas relações médico-pacientes também são extensivas aos tribunais. É cada vez mais frequente a judicialização dessa relação que ocorre pela maior quantidade de informações disponibilizadas às pessoas, bem como pelos direitos civis reconhecidos ao paciente. Porém, há uma consequência pernóstica desse fato: a prática da medicina defensiva. Esta consiste na

[...] prática médica que prioriza condutas e estratégias diagnóstico-terapêuticas que têm como objetivo evitar demandas judiciais. Implica um desvio da conduta considerada cientificamente padrão nos cuidados com o paciente por se caracterizar pelo uso excessivo de recursos técnicos. O benefício visado pela prática da medicina defensiva é, essencialmente, do próprio médico e subsidiariamente do paciente. 5

Infelizmente ocorre uma deturpação dos valores envolvidos nessa relação. De um lado está o médico que quer evitar "incómodos" relacionados à sua prática médica - muitas vezes utilizando-se de expedientes que não seriam recomendados, dependendo do paciente e da situação, num evidente esgotamento de todos os recursos disponíveis - e também usando da "autoridade" de médico que, numa visão tradicional cultural, é superior ao do paciente, pois "sabe o que é melhor para ele". No outro extremo está o paciente, sujeito impotente, hipossuficiente nessa relação, muitas vezes desconhecedor de seus direitos e das informações que pode e deve solicitar, sobretudo sobre o seu Page 116 estado de saúde e do seu tratamento, além de não querer tomar consciência de seu estado, com uma "tendência em transferir as responsabilidades pela decisão para a pessoa do médico, resistindo em assumir uma maioridade frente à enfermidade" 6.

A judicializaçao da relação médico paciente tem raízes na falta de informação. Conforme pesquisa divulgada na revista médica especializada Lancet 7, as insatisfações dos pacientes com os médicos levam aqueles a procurar o Judiciário. Tal problema ocorre especialmente pela falta de informações que são disponibilizadas ao paciente.

A Associação Médica Mundial criou a chamada Declaração sobre Negligência Médica, em que buscou alertar os países para atos de negligência e nos efeitos que tais atos ocasionam para as partes envolvidas. A Declaração de 1992 objetiva evitar que médicos e instituições de saúde venham a sofrer processos por má prática, além de também alertar para a chamada prática da medicina defensiva. 8 O documento foi elaborado com a intenção de reduzir a quantidade de ações ajuizadas por pacientes, tentando esclarecer quais ações devem ser tomadas pelos médicos e associações, especialmente nos Estados Unidos, em que a judicializaçao é bastante significativa. De outro lado, teve como meta prevenir outros países em que não há tantas demandas na área.

O presente trabalho tem por objetivo verificar os principais requisitos do consentimento informado e apontar os motivos pelos quais tal documento deve se transformar em rotina nos hospitais, evitando que o paciente fique subjugado às condutas médicas apontadas como "imprescindíveis", e decida o que é melhor para si, de acordo com a autonomia da vontade e dignidade pessoal.

1 Funções do consentimento informado e documentos internacionais

A deontologia médica atual não pode existir sem que haja o consentimento informado de pacientes que se submetem a tratamentos médicos bem como para os sujeitos de pesquisa.

Atualmente, houve a superação da prática que apenas visava obter do paciente o consentimento, numa flagrante atitude do médico de eximir-se de responsabilidade. Hoje há uma transferência deste paradigma para outro, consistente na "qualidade do entendimento e do consentimento de um paciente ou de um sujeito de pesquisa" 9.

O objetivo principal do consentimento informado está em "tornar possível a escolha autônoma por parte das pessoas que se submetem a um tratamento de saúde ou a um experimento científico" 10. Além desse, que é o objetivo principal, o instrumento também tem como meta a proteção do paciente contra danos oriundos de um tratamento mal sucedido, bem como incentivar os profissionais de saúde a agir de forma responsável quando atuam em prol da vida e saúde humana. 11 Aduz ainda Hall que o objetivo do consentimento informado é aumentar a autonomia pessoal das decisões que afetam o bem-estar físico e psíquico do paciente. 12

A importância do consentimento informado foi destacada pela Carta dos Direitos Humanos da União Europeia, construída conjuntamente pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão Europeia elaborado em Nice, em 7 de dezembro de 2000. Logo no seu art. 3, que trata do direito à integridade do ser humano, a Carta refere que "no domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados, designadamente: o consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da lei" (...) 13. Ainda é possível encontrar declarações sobre o consentimento "livre e esclarecido" em vários diplomas normativos, tais como: Código de Nuremberg (1947); Declaração de Helsinque (1964), revisada em 1989; Diretrizes Internacionais Propostas para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos (1985), reelaborada em 1993; Normas de Pesquisa em Saúde (1988), estabelecida pelo Conselho Nacional de Saúde (arts. 5º, V, e 11); Disposições do Comitê Ético-Científico Central da Dinamarca (1993).

Destaca-se também o texto da Declaração do Congresso Mundial de Bioética, promovido pelo Comitê Científico da Sociedade Internacional de Bioética, ocorrido em Gijón, Espanha, de 20 a 24 de junho de 2000. O documento proclama que "Cada um tem o direito aos melhores cuidados médicos possíveis", reforçando a declaração que "o doente e o médico devem decidir juntos o domínio do tratamento. O doente deverá exprimir o seu consentimento livre após ter sido informado de maneira adequada." 14 Verifica-se, com isso, a importância dada pelos organismos internacionais Page 117 ao Consentimento Informado, que deve orientar a atuação do profissional da saúde e na realização de pesquisa, e não constituir-se meramente em declaração vazia de significado. Visa, com isso, reforçar as declarações deontológicas e códigos de ética médica em todos os países que seguem os princípios bioéticos. Segundo posição do Comitê de Bioética da Itália, o consentimento informado constitui-se na legitimação e no fundamento do ato médico 15.

2. Conceito de consentimento informado

Ao falar-se de consentimento informado quer-se referir "a uma condição indispensável da relação médico-paciente e da pesquisa em seres humanos. Trata-se de uma decisão voluntária, verbal ou escrita, protagonizada por uma pessoa autônoma e capaz, tomada após processo informativo, para a aceitação de um tratamento específico ou experimentação, consciente dos seus riscos, benefícios e possíveis consequências". 16 Com essa definição, Joaquim Clotet aponta os principais requisitos para o consentimento voluntário surtir os desejados efeitos. Neste patamar de compreensão, a pessoa autônoma é aquela que "não somente delibera e escolhe seus planos, mas é capaz de agir com base nessas deliberações" 17.

Pode-se entender o consentimento informado em duplo aspecto. O principal aspecto está relacionado ao significado que está legalmente previsto nas legislações dos países e que consiste meramente na assinatura de um documento. Consiste na anuência de uma pessoa para que a mesma seja submetida a tratamentos médicos ou a pesquisas científicas. 18 É temerária essa compreensão reduzida. Isso porque o consentimento informado envolve partes desiguais na relação médica -de...

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