América Latina: Nunca Mais! A Reação contra as Leis de Anistia

AutorRaquel Portugal Nunes
CargoAluna da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

"Ele nunca foi julgado, mas Deus irá julgá-lo.”

Filha de um dos desaparecidos durante o regime Pinochet no dia da morte do ex-ditador.

“(…) nós entendemos que é dever dos cristãos criar o reino de Deus na terra.”

Rigoberta Menchú, líder indígena Guatemalteca.

Introdução

A América Latina1, na segunda metade do século XX, foi marcada pela brutalidade de ditaduras militares que governaram quase todos os países da região.2 Com o apoio econômico e militar dos Estados Unidos, essas ditaduras ficaram conhecidas pelo uso sistemático de tortura, desaparecimento forçado, execução extra-judicial e exílio de opositores políticos.

Em 1996, todos os países latino-americanos que sofreram com regimes autoritários haviam passado por um processo de democratização. Um fenômeno problemático, no entanto, acompanhou a transição democrática: a edição de leis de anistia. As complexas implicações da anistia e o sentimento de injustiça e impunidade que ela geralmente transmite atraíram a atenção de vários estudiosos, de forma que, nos anos 80, a anistia foi um fenômeno amplamente estudado.

Nos últimos anos, no entanto, uma nova tendência pode ser observada, renovando o interesse no estudo das leis de anistia latino-americanas. Décadas após sua edição, as leis de anistia estão sendo questionadas em diferentes frontes, em âmbito internacional e nacional.

O caso Pinochet chamou atenção para vários casos de julgamentos, por tribunais europeus, de latino-americanos protegidos por leis de anistia em seu país. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fez públicos vários relatórios condenando as leis de anistia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou que tais leis violavam o direito internacional. Influenciados pela pressão externa, os tribunais nacionais na América Latina começaram a questionar as leis de anistia de seus Estados, declarando-as nulas e julgando os responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas durante o regime ditatorial.

Essa mudança de atitude em relação às leis de anistia tem enorme importância para as democracias latino-americanas. Um dos principais desafios do sistema judiciário na região é a falta de confiança que as pessoas nele depositam. A elite de um país é percebida e se percebe como imune ao direito. A prisão não é um lugar para aqueles que detém poder. Um sistema penal que trabalha dessa forma não pode reclamar-se legítimo. Nesse sentido, a busca pela responsabilização dos líderes políticos que cometeram violações de direitos humanos é também uma busca pela legitimidade do sistema judiciário, de forma que a população da América Latina possa acreditar em algo mais do que uma justiça divina.

Esse artigo apresenta um estudo acerca do fenômeno da contestação das leis de anistia latino-americanas. A partir da análise dos diversos fóruns nos quais tais leis foram tidas como inaptas à impedir o julgamento e punição de graves violações de direitos humanos, pretende-se demonstrar a obrigação dos tribunais nacionais de declarar nulas as leis de anistia de seus Estados.

1. Anistia
1. 1 O Conceito de Anistia

O termo anistia deriva da palavra grega amnestia, que significa esquecimento, falta de memória.3 O dicionário Black’s Law define anistia como o perdão que um soberano concede a certos indivíduos que supostamente cometeram atos ilícitos. Ela é tipicamente concedida a um grupo ou classe de pessoas antes ou depois de um julgamento, diferentemente do instituto do perdão que é dado a um indivíduo depois de ele já ter sido condenado.4 Na América Latina, tornou-se comum que os governantes proclamassem uma auto-anistia, que é uma lei editada por aqueles e para aqueles que estão no poder.5

As leis de anistia podem ter alcance variado. Algumas abrangem somente crimes políticos, outras excluem do seu alcance os crimes internacionais. Há, ainda, anistias extremamente amplas que buscam imunizar todos os agentes do Estado por todos os crimes que eles cometeram em determinado período de tempo, independentemente de tratar-se de crime comum, de crime político ou de crime internacional.6

As leis de anistia geralmente abrangem os crimes da oposição, assim como os crimes cometidos pelos militares. Na América Latina, no entanto, as violações cometidas pelo governo foram muito mais numerosas.7 Além disso, as leis de anistia não puderam estender seus efeitos a vários opositores do governo porque “eles já tinham sido mortos, desaparecido ou estavam no exílio”.8 A anistia é usualmente ligada à impunidade uma vez que ela permite que indivíduos não sejam responsabilizados pelos seus crimes, sendo uma barreira à punição.9 No entanto, elas também são freqüentemente apresentadas como uma solução para facilitar a entrega pacífica de poder por um violador de direitos humanos. Na América Latina, as leis de anistia foram consideradas uma ferramenta de barganha para induzir os ditadores à abandonar o poder e promover transições pacíficas do governo militar ao governo civil.

2. A Reação às Leis de Anistia
2. 1 Julgamentos de Latino-Americanos por Tribunais Estrangeiros

Diante da recusa, fundamentada nas leis de anistia, de tribunais nacionais em julgar violadores de direitos humanos, alguns indivíduos decidiram apresentar seus casos perante tribunais estrangeiros. O princípio geral que permite que um Estado julgue o responsável por um crime é o princípio territorial, ou seja, o ato ilícito deve ter ocorrido dentro das fronteiras do Estado. Existem, contudo, três outros princípios nos quais um Estado pode basear-se para julgar um estrangeiro por crimes cometidos em solo não-nacional. Os dois primeiros são os princípios da personalidade ativa e passiva, com base no qual diversos países reconhecem jurisdição sobre crimes cometidos pelos seus nacionais ou contra seus nacionais, independente do lugar onde o fato ocorreu.10 O terceiro princípio é o da jurisdição universal. Segundo ele, existem crimes considerados de tal forma graves que podem ser julgados por qualquer Estado, mesmo que tenham ocorrido fora do seu território e que o Estado não tenha qualquer conexão com o acusado ou com o ofendido.11

2.1. 1 Argentina

De todos os países latino-americanos, a Argentina foi o mais afetado pelos julgamentos de seus militares por tribunais estrangeiros. Pedidos de extradição foram feitos pela Espanha, Alemanha, Itália e França. Um dos casos mais conhecidos de julgamento de um latino-americano, protegido por leis de anistia, pelo tribunal de um país europeu, envolveu o argentino Alfredo Astiz, acusado de ser o responsável pela tortura e morte, na Argentina, de duas freiras francesas. Em 1990, uma corte da França julgou Astiz in absentia, o declarou culpado, e o condenou à prisão perpétua. A França, então, pediu à Argentina a extradição de Astiz. Esta recusou o pedido, baseando sua decisão na proteção que as leis de anistia davam ao militar.12

2.1.2. Chile

Em 1996, algumas associações entraram com uma ação na Espanha contra a junta militar que governou a Argentina entre 1973 e 1983. Pesquisando o regime Argentino, o juiz responsável pelo caso, Juiz Baltasar Garzón, começou a investigar Augusto Pinochet, o exchefe de Estado chileno, em razão do seu envolvimento na “Operação Condor”, um esforço conjunto entre o governo chileno e argentino para rastrear, torturar e eliminar os seus opositores políticos.13

Em 1998, Pinochet foi à Inglaterra para fazer um tratamento médico. Enquanto ele estava no país, o Juiz Garzón pediu sua extradição para que fosse submetido à julgamento na Espanha.14 De acordo com o pedido, Pinochet iria responder à acusações de tortura, assassinato e seqüestro, com base no princípio da jurisdição universal.15

O pedido de extradição eventualmente chegou à Casa dos Lordes do parlamento inglês.16 A validade da lei de anistia chilena não foi sequer considerada.17 A Casa dos Lordes considerou basicamente duas questões. A primeira consistia em determinar se Pinochet tinha ou não imunidade pelos crimes que ele supostamente teria cometido enquanto governou o Chile. Tradicionalmente, um chefe de Estado é visto como a incorporação do próprio Estado e, conseqüentemente, qualquer ação empreendida contra ele é vista como um insulto à soberania estatal.18 A Casa dos Lordes decidiu, porém, que um soberano que ordenou a prática de tortura não estava agindo como um chefe de Estado, mas fora de sua capacidade. Nessas circustâncias, não poderia ele estar protegido pelo instituto da imunidade após o término de seu mandato.19

A segunda questão considerada envolvia a regra da dupla criminalidade.20 De acordo com essa regra, um dos requisitos para a extradição é que a conduta alegada contra a pessoa pelo Estado requerente seja também uma ofensa no Estado requerido. No caso Pinochet, a regra tinha uma aplicação mais complexa, uma vez que a Espanha estava fazendo uso da jurisdição universal e tinha afirmado sua jurisdição contra a tortura cometida em qualquer lugar do mundo. A Casa dos Lordes tinha então de decidir se uma ofensa extra-territorial de tortura era uma ofensa contra o direito britânico, ou seja, se uma tortura cometida fora do Reino Unido, era um crime passível de julgamento no país.21 Os Lordes decidiram que a tortura era sim uma ofensa extra-territorial no Reino Unido, uma vez que o Estado havia ratificado a Convenção sobre Tortura, a qual estabelecia que os Estados-partes deveriam exercer jurisdição sobre qualquer acusado de tortura que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT