Soberania e superação do Estado constitucional moderno

AutorPaulo Marcio Cruz/Cássia Vanessa Olak Alves Cruz
CargoUniversidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Universidade de Alicante, na Espanha.
Páginas55-64

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1 Introdução
1. 1 A Soberania como Característica do Estado Constitucional Moderno

O conceito de Soberania, historicamente, esteve vinculado à racionalização jurídica do Poder, no sentido de transformação da capacidade de coerção em Poder legítimo. Ou seja, na transformação do Poder de Fato em Poder de Direito, configurando um dos pilares teóricos do Estado Constitucional Moderno.

Bobbio (1994) indica que o conceito de Soberania pode ser concebido de maneira ampla ou de maneira estrita. Em sentido lato, indica o Poder de mando de última instância, numa Sociedade política e, conseqüentemente, a diferença entre esta e as demais organizações humanas, nas quais não se encontra este Poder supremo. Este conceito está, assim, intimamente ligado ao Poder político. Já em sentido estrito, na sua significação moderna, o termo Soberania aparece, no final do Século XVI, junto com o Estado Absoluto, para caracterizar, de forma plena, o Pode estatal, sujeito único e exclusivo da política.

Com a superação do Estado Absoluto e o conseqüente surgimento do Estado Constitucional Moderno, a Soberania foi transferida da pessoa do soberano para a Nação, seguindo a concepção racional e liberal defendida por pensadores como Emanuel Joseph Sieyès, expressa em sua obra A Constituinte Burguesa e sistematizada por meio da sua teoria do Poder Constituinte.

Sieyès (2001, p. 113) estabeleceu a doutrina da Soberania da Nação, dizendo que em toda Nação livre - e toda Nação deve ser livre - só há uma forma de acabar com as diferenças que se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria Nação.

Foi com essa posição que o autor concebeu, racionalmente, o princípio da Soberania da Nação como instrumento de legitimação para a instituição do Estado Constitucional Moderno.

Assim, a proclamação da Soberania como independência ante qualquer poder externo tornou-se uma manifestação característica e essencial do Estado Constitucional Moderno desde seu início. A consolidação do princípio democrático supôs a reafirmação da Soberania com relação ao exterior, passando a ser proibida qualquer interferência nas decisões internas da comunidade, adotadas livremente por esta. Em muitos casos, como nos movimentos pela independência colonial, estavam unidas aspirações pelo estabelecimento do sistema democrático e a consecução da independência nacional.

A Soberania Nacional, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, passou a debater-se para conciliar-se com um fato inegável: que as comunidades políticas - os Estados - passaram a fazer parte de uma sociedade

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internacional, regida por normas próprias. O Estado Constitucional Moderno Soberano encontrou-se, forçosamente, vinculado a obrigações externas, obrigações estas que tiveram origens muito diversas. Podem ter sido resultado de tratados bilaterais, de convenções multilaterais ou podem ter sido resultado da existência, reconhecida e consolidada, de uma prática costumeira no âmbito internacional (CRUZ, 2002).

Hodiernamente, o descumprimento de obrigações internacionais pode acarretar sanções importantes por parte dos outros Estados, normalmente representados por um organismo específico. Progressivamente, o ordenamento internacional passou a dispor de mais armas, jurídicas e econômicas, destinadas a assegurar o cumprimento destas sanções, sempre numa perspectiva de conflito.

A existência de uma Sociedade internacional e, conseqüentemente, de obrigações vinculantes para o Estado Constitucional Moderno, não é incompatível, em princípio, com a Soberania deste. Tal compatibilidade é resultado do princípio de que os compromissos internacionais do Estado derivam do consentimento deste mesmo Estado.

KELSEN (1969, p. 421) referindo-se à vinculação do Estado Constitucional Moderno por meio de tratados, escreveu que:

Em regra geral, pode-se dizer que o tratado não prejudica a soberania, já que, definitivamente, esta limitação se baseia na própria vontade do Estado limitado; mais ainda: em virtude desta limitação, fica assegurada a soberania estatal.

Conforme esta construção histórica, o Estado Constitucional Moderno assume voluntariamente suas obrigações internacionais, ficando, desta forma, submetido ao Direito Internacional por sua própria vontade soberana.

Como reflexo desta concepção, as Constituições passaram a prever que o Estado Constitucional Moderno "soberano" poderia assumir voluntariamente obrigações internacionais. Desta forma, ficaria ressalvada a doutrina da Soberania. Acrescente-se que essas obrigações dependeriam, pelo menos as mais importantes, da aprovação dos respectivos parlamentos representantes do povo. Mesmo que seja o Poder Executivo o encarregado de gerir as relações internacionais, passou a ser exigido que os tratados sejam aprovados pelos parlamentos.

Até pouco tempo, esta construção teórica bastava para a discussão sobre a inserção do Estado do âmbito internacional, porém sabe-se que a realidade atual não corresponde a ela. Com a crescente inter-relação e interdependência entre Estados e a consolidação de princípios norteadores do comportamento entre eles foram provocando, de maneira evidente, a consolidação de uma ordem jurídica internacional, cuja força vinculante é difícil de explicar em virtude da "aceitação" de cada Estado.

Pereira (2004) no mesmo sentido comenta que a Sociedade internacional, em seu atual estágio, por um lado definido pela interação cultural decorrente das facilidades de comunicação e transportes e, por outro, explicado pela globalização interdependente em vigor no planeta, não pode mais considerar o conceito de Soberania absoluta.

As análises em torno da fragilidade do conceito moderno de Soberania não são recentes. Jacques Maritain já questionava o conceito de Soberania em sua obra "El Hombre y el Estado", dizendo que as razões para assim proceder é o fato de que, em suas origens históricas, a Soberania, como assinalou Jellinek, é um conceito político que foi posteriormente transformado para proporcionar uma base jurídica ao poder político do Estado Constitucional Moderno.

A tese de Maritain (1983) é que a filosofia política deveria liberar-se da palavra e do conceito de Soberania. Não porque seja um conceito caduco ou em virtude de uma teoria sociológico-jurídica do Direito objetivo. Nem porque o conceito de Soberania cria dificuldades e confusões teóricas insuperáveis no campo do Direito Internacional. Mas sim porque, tomado em seu autêntico sentido e na perspectiva do campo científico a que pertence (o da filosofia política), este conceito é intrinsecamente ilusório e não pode fazer outra coisa a não ser extraviar aqueles que continuem empregando-o com o pretexto de que foi aceito universalmente e por muito tempo para poder rechaçá-lo, negando-se a ver as conotações errôneas que são inseparáveis dele.

Maritain (1983) afirma que reconhece o direito do corpo político à autonomia plena, como direito natural e, inclusive, inalienável, entendido no sentido de que ninguém pode subtrair esse direito do cidadão pela força. Mas de nenhuma maneira no sentido de que a plena independência em questão seja inalienável em si mesma e o corpo político não possa abandonar livremente seu direito à plena autonomia se reconhece que não é já uma Sociedade "perfeita" e que se basta em si mesma e consciente em entrar numa Sociedade política mais ampla. Com isso ele já antevia a possibilidade de uma "Sociedade das Sociedades", transnacional, numa posição extremamente avançada.

Em conseqüência, nem o primeiro elemento inerente à Soberania autêntica, ou seja, o direito natural e inalienável à independência e ao poder supremos, nem o segundo elemento inerente àquela, ou seja, o caráter "absoluto e transcendentalmente supremo" desta independência e deste poder, que na autêntica Soberania são supremos separadamente do todo governado pelo Soberano e por cima desse todo, podem ser atribuídos de maneira alguma ao Estado Constitucional Moderno, que não é e nunca foi jamais autenticamente soberano (MARITAIN, 1983).

Os conceitos de Absolutismo e Soberania foram forjados juntos no mesmo forno. Com relação ao Poder Público, o primeiro conceito já foi superado e o segundo apresenta evidentes sinais de exaustão.

Toda vez que prevalece a idéia de um organismo internacional, sem que haja a hegemonia de uma Nação ou de um grupo de nações, estamos, é verdade, superando o conceito de Estado Constitucional Moderno, cujo atributo principal é a Soberania, que tem dificuldade para conviver com a idéia de um sistema transnacional.

Sob este ângulo, também, o Estado Constitucional Moderno Soberano não se sustenta. Na verdade, em face da economia mundial, a par do fenômeno das comunicações velozes, a Soberania estatal perde sua substância. A globalização da economia gerou relações de interdependência, nas quais os Estados têm sido, no

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mínimo, obrigados a reunirem-se em grupos, as fronteiras comerciais desaparecem e a moeda nacional será, pouco a pouco, substituída por outro instrumento comum de troca e de compra e venda. Criados os grupos, sem nenhuma conotação étnica, o passo subseqüente será a execução de uma política de alinhamento não mais de países, mas de grupos, até a economia mundial tornar-se hegemônica - se já não o é -e as fronteiras econômicas desaparecerem.

É possível que o movimento de globalização, com a intervenção de novos pressupostos democráticos, impulsione outras formas de integração, que permitam o início de uma caminhada em direção a uma maior fraternidade universal e um desenvolvimento comum solidário.

O exame da realidade do mundo, nos dias de hoje, bem como as modificações havidas na trajetória histórica do Estado Constitucional Moderno, levam à verificação de que houve uma mudança estratégica na postura dos Estados, tanto no plano...

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