O direito social amigo da pobreza e distante do pobre

AutorHélio de Souza Rodrigues Júnior
Páginas395-426

Hélio de Souza Rodrigues Júnior. Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB, especialista em Filosofia Política pela UFC e especialista em Direito Constitucional pela UNIFOR. E-mail: rodrigues.helio@terra.com.br

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Introdução

O trabalho aqui desenvolvido pretende examinar criticamente o direito social à assistência social exatamente a partir das idéias liberais1 que direcionam e moldam esse direito, ou seja, o texto reflete criticamente sobre alguns elementos que caracterizam e orientam o direito social de combate à pobreza2, quais sejam, o de ser um direito isolado do conjunto de relações sociais e considerado fonte de desigualdade criadora. E assim fazendo, em última análise, identifica-se o motivo pelo qual dado direito social de combate à pobreza, e não um outro, rege a sociedade brasileira neste momento histórico. Sem nenhuma pretensão de identificar exaustivamente todas as características que permeiam esse direito, trata-se de refletir criticamente sobre suas bases estruturais, ou primárias, fundamentalmente integradas e coadunadas com o liberalismo. E, para tanto, procede-se a um longo diálogo com a teoria da cidadania defendida por T.H. Marshall e a particular concepção da modernidade liberal de Robert Castel.

Sublinha-se, desde logo, 3 questões: o conceito de liberalismo e neoliberalismo trabalhado neste texto; o significado da expressão examinar criticamente o direito social à assistência social; e a justificativa deste trabalho não utilizar um dado programa estatal como símbolo da assistência social. Em poucas palavras e a partir do conceito de Pierre Salama e Jacques Valier (1997, p.103), por liberalismo ou neoliberalismo relacionado aos direitos sociais de combate à pobreza entende-se a direção política no sentido de que a diminuição da pobreza é concebida como um subproduto de um crescimento econômico restabelecido graças às reformas que desestruturam e retiram a importância; a significação; o conteúdo; e a razãoPage 396 de ser, dos fins e das atividades intervencionistas do Estado; além da própria regulação social do trabalho, de tal modo que enquanto se espera aquele crescimento econômico, há implementações imediatas de políticas focalizadas de assistência aos extremamente pobres. Sabe-se da existência de questionamento ao uso do termo neoliberalismo3 e a estreita vinculação dada entre ele e o direito social de combate à pobreza, via as contemporâneas políticas sociais brasileiras4. Não obstante, tanto a pertinência do uso desse conceito como o estudo crítico das características do direito social umbilicalmente vinculadas ao neoliberalismo são objetos de inúmeros outros trabalhos acadêmicos, jornalísticos e políticos, perfazendo uma compreensão e um conceito já sedimentados.

Por examinar criticamente o direito social de combate à pobreza, busca-se fugir do padrão de um texto com críticas às próprias normas legais que disciplinam esse direito ou à mera administração da política social brasileira. Assim, por crítica, este trabalho quer mostrar os efeitos integradores entre a sociedade capitalista e o isolamento do direito social e a sua legitimidade, mesmo quando cria ou ampara desigualdades.

A razão pela qual não existe uma identificação e análise de uma política social específica, isto é, um dado programa estatal implantado para ser analisado e avaliado, inclusive à luz do que estabelece a constituição brasileira, deverá ser suprido em estudos complementares. Todavia, o objeto deste trabalho não é descrever o que é visível na legislação ou mostrar se um dado programa estatal obedece ou não os objetivos traçados, muito menos se, à luz das normas da constituição ele é ou não inconstitucional. A abundância dos detalhes produzidos sobre um dado programa estatal, tal como ele se apresenta, produz um certo conhecimento. E, apesar dessa análise ser válida e colacionar inúmeras vantagens de estudo, isto é diferente da finalidade deste trabalho. Ao ser apresentada a integração entre a sociedade capitalista e o isolamento do direito social e a sua legitimidade em criar desigualdades, busca-se apresentar uma outra leitura acerca da evolução dos direitos fundamentais, notadamente a dos direitos de segunda geração, bem como da própria relação entre direito social e questão social.

Assim, a primeira parte deste trabalho faz uma brevíssima explanação da relaçãoPage 397 entre pobreza e desigualdade social, refletindo sobre um direito social isolado do conjunto de relações sociais e considerado fonte de desigualdade criadora. As subseções analisam e submetem à crítica o direito social de combate à pobreza com base em Marshall e Castel. O último tópico perfaz as considerações finais, onde se compreende que as características do direito social de combate à pobreza refletem o pensamento hegemônico neoliberal. Este tópico mantém-se aberto à complementações de novas e outras reflexões, inclusive sobre questões que aqui não foram focalizadas e/ou indagadas.

O direito social isolado do conjunto de relações sociais e fonte de desigualdade: uma leitura dos direitos fundamentais de segunda geração e da relação direito social e questão social

A reflexão sobre o direito social à assistência social poderia indicar uma abordagem meramente descritiva dos elementos marcantes (característicos) desse direito social. Todavia, partindo-se do pressuposto de que o direito social à assistência social não pode ser verdadeiramente conhecido, isto é, compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu a sua existência e o seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do direito social do seu isolamento, projeta-o no mundo real onde ele encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social (MIAILLE, 1979, p. 19). Portanto, repita-se, trata-se de saber porque é que dado direito social de combate à pobreza, e não dado outro, rege nossa sociedade, nesse dado momento. Se a ciência jurídica apenas pode dizer como essa regra funciona, ela encontra-se reduzida a uma tecnologia jurídica perfeitamente insatisfatória. Deve-se exigir mais dessa ciência, ou melhor, exigir coisa diversa de uma simples descrição de mecanismos (MIAILLE, 1979, p. 19).

Pode-se iniciar com a seguinte formulação: se o direito social aqui recortado visa combater a pobreza, e se ele deve ser visto numa perspectiva de relação com as outras esferas do social, a sua primeira relação é com o próprio fenômeno social chamado pobreza. Ocorre que, também, se deve buscar compreender o fenômeno pobreza nessa mesma perspectiva, isto é, compreendendo-a em relação as outras esferas do social.

O termo pobreza alude a fenômenos que só podem ser explicados tendo em conta o conjunto do sistema de relações sociais. Todavia, o habitual é encontrar reflexões que pretendem reduzir o problema da pobreza a identificação de seus indicadores, cujo objetivo é medir e descrever a situação da pobreza. Geralmente, esta pratica tende a construir uma espécie de “catálogo descritivo”, onde se compilam um leque de soluções para atender as particularidades de cada grupo ou categorias de pobres. Este tipoPage 398 de análise é um problema que não envolve somente uma questão de método de combate à pobreza, mas também tem profundas implicações políticas, pois consolidaria a idéia de que a pobreza é um fenômeno autônomo e despregado do resto da sociedade e das políticas públicas. (VUOLO, 1999, p. 9, grifo do autor, tradução nossa):

Seguindo inteiramente as reflexões de Vuolo (1999, tradução nossa), quando são definidas categorias de pobreza, dilui-se a importância dos fenômenos sistêmicos desse problema, pois tudo indicaria que não há origem em comum, mas sim causas particulares da pobreza. Ao enfraquecer os vínculos entre as distintas manifestações da pobreza e os fenômenos de ordem mais global, o resultado é que com isso tais análises não submetem a pobreza à crítica de ordem econômica, ao modelo de políticas públicas que são adotadas e ao sistema de valores sociais. Para entender a pobreza em suas diversas manifestações, deve-se observar e explicar a desigualdade social. Deve-se indagar sobre os particulares processos de acumulação que historicamente foram se consolidando, daí porque o tema pobreza envolve discutir as raízes que explicam as profundas desigualdades que estão se consolidando, e outras já consolidadas, em nossa sociedade. O que interessa é saber as causas que geram desigualdades tão flagrantes entre a população, de modo que não basta a distinção e classificação dos pobres, pois também é necessário analisar os sistemas de valores e de normas que respaldam essas desigualdades, os processos econômicos globais que lhes outorgam materialidade e as estratégias políticas que lhes legitimam.

É com base nesse foco limitado sobre a pobreza que Pedro Demo (1995; 1996; 2000; 2003) colacionar duas outras questões importantes: a concepção de pobreza política e a ardil desvinculação entre pobreza e desigualdade social. Ambas interessarão diretamente o direito. No que se refere à pobreza política, as definições dadas por Demo (1995; 1996; 2000; 2003) caminham no mesmo e único sentido de afirmar que o ponto central da pobreza é a exclusão política e não a carência material. Ele não desconsidera a carência material, apenas não a formula como característica fundamental da pobreza, destacando que a pobreza surge quando os bens se tornam bens privilegiados, fruto de uma injusta distribuição que é imposta e historicamente produzida e mantida5; afinal “há que se observar que insuficiência de...

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