A evolução da função social da propriedade

AutorGustavo Paschoal Teixeira de Castro Oliveira; Silvia Kellen da Silva Theodoro
CargoAdvogado em Ribeirão Preto, SP. Mestrando em Direito; Advogada em Ribeirão Preto, SP. Mestrando em Direito.
Páginas1-15

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Disposições preliminares

Desde o "descobrimento do Brasil" a questão agrária encontra-se inserida na sociedade, sendo manifestada, hodiernamente, através de reivindicações de reforma agrária, figurando as populações campesinas de um lado e, do outro, grandes proprietários de terras.

O cumprimento da função social da propriedade rural tem por finalidade o fomento da produção, da integração da sociedade rural no processo de desenvolvimento nacional e de uma melhor distribuição de terras, pautada tanto pela justiça quanto pela moral.

A questão da função social da propriedade rural encontra-se abarcada por alguns ramos do Direito, sendo que encontra profundo vínculo no Direito Agrário, que, de acordo com Borges1, "é o conjunto sistemático de normas jurídicas que visam disciplinar as relações do homem com a terra, tendo em vista o progresso social e econômico do rurícola e o enriquecimento da comunidade".

Gischkow2 leciona que:

O direito agrário é o sistema normativo com caráter publicístico, fundado na função social da propriedade, que disciplina as relações jurídicas que têm por Page 2 base a atividade agrária, regulando a redistribuição de terra (regime fundiário) e a atuação dos sujeitos agrários sobre os objetos agrários - propriedade, posse e ocupação de terra, assim como os vínculos obrigacionais entre os que a possuem e cultivam.

O vocábulo "agrário" vem do latim ager, agri, ou seja, campo, idéia de campo como suscetível de produção. Difere seu significado do vocábulo "rural", pois este se origina de rus, palavra de origem latina que também significa campo, mas com a idéia daquilo que é oposto à cidade (urbs), com o sentido de localização, apenas.

Não se trata a questão agrária de uma simples e mera problemática. Vai mais além, pois, para que se possa discutir construtivamente a respeito do assunto, deve-se ter em mente a questão da justiça social. Para isso é necessário o estudo de certos dispositivos legais vinculados à questão da função social da propriedade rural e ao direito de propriedade, bem como da evolução histórica da propriedade, como se verá adiante.

1. Evolução histórica do conceito de propriedade e da questão agrária
1.1. Grécia Antiga

Desde a Grécia Antiga já se discutia a problemática das terras, bem como já se processavam movimentos agrários (luta da plebe contra os patrícios e a nobreza). Há de se dizer também de Atenas e Esparta, que disputavam a liderança política e econômica do mundo antigo. A princípio, tanto os conquistadores dóricos da Lacônia (espartanos), quanto os jônicos da Ática (atenienses), tinham por base uma organização comunitária, mas com o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, com a expansão da propriedade privada e das cidades, tal organização se modificou.

Tais fatos deram ensejo ao desenvolvimento do comércio e da navegação e, conseqüentemente, ao surgimento das guerras, trazendo novas riquezas e novos hábitos. Licurgo, figura legendária da história, surge em Esparta. Naquela época, reinava em Esparta grande desigualdade social, em que a maioria esmagadora de cidadãos padecia na miséria, enquanto uma ínfima minoria desfrutava da riqueza. Com a finalidade de suprimir todos os males decorrentes dessa desigualdade, Licurgo persuadiu os proprietários de terras à que entregassem seus bens à coletividade, para que todos pudessem viver em pé de igualdade.

De acordo com Ferreira3, a região da Lacônia foi repartida em "30 mil partes entre seus habitantes, e as terras que circundavam Esparta, em 9 mil partes". Ao contrário da legislação comunista de Esparta, em Atenas reinava a nobreza. No ano de 621 a.C., coube a Drácon codificar as leis escritas. Penas bastante severas eram aplicadas, especialmente no que tocava o direito de propriedade. Como conseqüência de tamanha severidade as "Leis de Drácon" tornaram-se sinônimo de grande brutalidade.

Posteriormente, tais leis foram substituídas pela legislação do líder Sólon, considerada mais humanas com o escopo de evitar uma revolução da plebe. Entretanto tais leis não agradaram nem à plebe nem à nobreza.

Clístenes, em 509 a.C., estabeleceu a democracia na Grécia. Atenas tornou-se a maior cidade do mundo, com cerca de 300 mil habitantes, tornando-se pólo de arte, filosofia, ciência, literatura, indústria, navegação e comércio. Atenas deixou de ser um Estado agrícola para se tornar uma potência marítima.

Tal desenvolvimento trouxe grande preocupação aos trabalhadores livres (proprietários de imóveis rurais com extensão de 6 a 50 hectares), pois tiveram que lutar contra o capitalismo e contra a concorrência do trabalho escravo, situação que denunciava a falta da verdadeira democracia, pois o que imperava na Grécia Antiga era uma democracia escravista. Page 3

Platão (429-347 a.C.), em sua obra A República, deu um passo importante na definição de propriedade. Descreveu o Estado ideal, segundo suas próprias concepções, concluindo que a melhor forma para se alcançar a Justiça é a construção de um Estado (diga-se aqui cidade-Estado, a polis).

De acordo com Silva4:

Segundo a concepção da época, a cidade é o homem escrito em letras grandes e a cidade ideal dessa forma, corresponde ao homem ideal. A construção da cidade platônica corresponde a uma relação entre as quatro virtudes da alma (Sabedoria, Temperança, Coragem e Justiça) e as três da alma (o apetite, a impetuosidade e a racionalidade). Assim, a cidade ideal também deveria ter três classes: os artesãos, que correspondem ao apetite, os guerreiros, correspondentes à impetuosidade e os guardiães à racionalidade.

Na concepção platônica de Estado, é imposta à classe governante (governo e exército) uma renúncia natural à propriedade, pois os "guardiães" e os "guerreiros" devem viver da forma que melhor realizem seu trabalho, não podendo sofrer interferências do apetite e do aspecto econômico.

Em situação oposta, encontram-se os "artesãos", cabendo a eles o sustento do Estado e a é-lhes conferida a liberdade do acúmulo de propriedades, não podendo, apenas, serem ricos ou pobres demais. Em outras palavras já existia a noção de propriedade condicionada à produção.

1.2. Roma Antiga

Originariamente, Roma formou-se pela população nativa, denominada patrícios, do latim pater, "o chefe da família, que detinha enormes poderes, tendo inclusive o poder de escravizar ou de manter os membros de sua família".5

A princípio, toda terra era pertencente à comunidade, tendo a família de patrícios um pequeno lote. Aqueles moradores que não se incluíam entre os patrícios eram conhecidos como plebeus. Eram livres, mas não detinham o direito de cidadãos (patrícios), muito menos o direito de cultivar a terra da comunidade. Fazem parte da história de Roma lutas dos plebeus pela posse da terra.

Ferreira6 leciona que, "com o desenvolvimento do Império Romano, a pequena cidade de Roma e o seu Estado agrícola se transformam numa potência mundial". Posteriormente, a riqueza começou a se concentrar nas mãos de poucos. Entretanto, em 134 a.C., os irmãos Tibério e Caio Graco procuraram fortalecer a plebe romana. Tibério propôs a restrição de quantidade de terras públicas que cada cidadão poderia ocupar. Todavia, tal projeto de lei foi vetado e Tibério Graco sofreu graves acusações, até mesmo de aspirar à coroa real, sendo assassinado.

A noção de propriedade, na Roma antiga, estava vinculada fortemente aos direitos personalíssimos, e qualquer tentativa de reforma agrária era considerada como algo impensável.

1.3. Da Idade Média ao início do Século XX

Pode-se dizer que a Idade Média foi um período marcado por conflitos que envolveram a nobreza e os campesinos, sendo estes severamente reprimidos. Era o momento em que as manufaturas se desenvolviam e os campos eram convertidos em pastagens para ovelhas, criando-se, Page 4 assim, uma massa de excluídos sem chances de progresso, cabendo-lhes apenas a mendicância ou a ladroagem.

Começaram a surgir nesta época algumas obras com a intenção de tratar de problemas sociais, incluindo a questão da propriedade. Dentre elas, encontra-se a obra Utopia (1516), de Thomas More, onde o autor discorre sobre um novo sistema de justiça, em que o que realmente importa é o valor moral de cada indivíduo, e não as posses acumuladas. Qualquer noção de propriedade deveria ser destruída para a garantia da justiça e da paz social.

Para John Locke, o Estado é fundado através do Contrato Social e considera que o fim maior e principal para os homens se unirem em sociedades políticas e se submeterem a um governo é a conservação de sua propriedade. Locke defende a idéia de que a propriedade privada decorre diretamente da liberdade e da racionalidade do indivíduo.

Sobre a Revolução Francesa, leciona Borges7:

Aparentemente movimento popular contra privilégios, em verdade substituição dos privilégios da realeza, da nobreza e do clero, pelo privilégio dos burgueses, comerciantes e industriais, os novos ricos, a Revolução Francesa deu vigor novo ao direito de propriedade, tornando-o quiçá mais sólido que entre os próprios romanos.

Dita o Código Napoleônico que propriedade é o direito de gozar e de dispor das coisas de maneira absoluta, desde que seu uso não viole leis ou regulamentos. Já a...

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