Decisão do Supremo Tribunal Federal e Direitos dos Pares. Homoafetivos: Uma (Re)Leitura à Luz dos Direitos Humanos

AutorDelmiro Porto
CargoAdvogado Civilista
Páginas75-81

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1. Proposta e problema: ideias iniciais

Sob o prisma da tridimensionalidade (Reale, 2002), pode-se afirmar que o direito aparece e cresce com a vida: quanto mais civiliter o exercício cotidiano de um povo, mais refinadas serão as normas que orientarão essa prática de vida. Isso pode ser ilustrado com o alcance do direito ao poder familiar, chamado de pátrio poder no seio da família patriarcalista (Venosa, 2011): esta filosofia de família foi transmitida ao Brasil, via colonização, e durou até o limiar do século XXI, entretanto o pater potestas (poder do pai), que permitia ao pai de família tirar a vida ao filho que nascesse disforme1, não chegou, naturalmente, aos dias atuais. Ou seja, a filosofia da patriarcalidade fora mantida em sua essência, que consistia na organização familiar fulcrada na figura masculina (a partir do homem e para o homem), porém há muito perdeu consistência o sentido de que tirar a vida ao filho aleijado era uma forma de proteger a família e a sociedade.

Essa evolução do direito, que se dá, com mais ou menos intensidade, de forma cosmopolita, por toda parte humanamente habitada, levou os juristas a classificar o amplo rol dos direitos em níveis diversos, normal-mente chamados de gerações, como lembra Ferreira Filho (1995). Os direitos humanos estariam, conforme o foco aplicado, entre os de primeira geração, como direitos básicos ou mínimos, que, consoante esse autor, seriam os direitos de liberdade, contudo, estariam também entre os de segunda geração, vistos como direitos de igual-dade, que fariam referência à condição humana nas relações sócio-econômico-culturais. Nas duas últimas décadas fala-se, a exemplo de Lafer (1988), em direitos difusos e coletivos, que estariam nas listas dos direitos de terceira e quarta gerações, como o direito ecológico.

A recente e histórica decisão do Supremo Tribunal Federal - STF, em sede dos Autos de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132-RJ, coroou a jurisprudência nacional do reconhecimento às parcerias homoafetivas2, com idênticos efeitos produzidos pela união estável aos heterossexuais. Em suma a ação teve por causa petendi a inconstitucionalidade do tratamento que o ordenamento tem oferecido aos conviventes de mesmo sexo, deixando de conferir a natureza de entidades familiares a tais arranjos, pelo que invocaram o instituto da inter-pretação "conforme a Constituição" do art. 1.723 do Código Civil, sob o alegado de que à luz desta visada sistemática cairia a exigência da diferença de sexo para se estabelecer família. Sabe-se que foi com base nessa hermenêutica contextual, estribada numa série de princípios constitucionais, em especial os da dignidade da pessoa humana, da igual-dade e da liberdade, que o provimento final se consagrou, reconhecendo às uniões homossexuais a configuração de união estável, vale dizer, de entidade familiar, tal qual a formada por heterossexuais, desde que (atenção) atenda aos demais requisitos exigidos para estes.

Na lição de Gonçalves (2010), união estável é a união informal, pública, contínua e duradoura, estabelecida com base no afeto e com a finalidade de estabelecer um núcleo familiar, assim como se vê do art. 1.723: "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".

Embora não esteja expresso, a afetividade é o cimento de todos os convívios voltados à formação de família (Lôbo, 2008), independente de essa formação primar por aspectos solenes (caso do matrimônio) ou de estar pautada na informalidade. Portanto, eis as exigências aos parceiros gays, a partir dessa decisão do STF, para que sejam avistados pelo direito como famílias: que cumpram com os pressupostos de existência da união estável (Porto, 2012), exceto a diferença de sexo, claro, e é o quanto lhes basta para que colham os efeitos da união estável, efeitos estes, até a decisão do STF, só conferidos aos heterossexuais.

No sistema romano-germânico, a jurisprudência tem papel secundário (Venosa, 2011), é sabido, ante o quê essas parcerias de homens ou de mulheres permanecerão, à luz da lei (fonte principal), na marginalidade, mas pela referida porta que se lhes abre, poderão adentrar ao nobre salão do direito, para receber os mesmos tratamentos que os convivas heterossexuais. Esta posição firmada pelo STF funciona como um atalho jurídico para os tais, pois se à luz da lei não são reconhecidos, não permanecerão à margem sempre que invocarem esse noviço recurso. Recurso este que se faz ainda mais estratégico se

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for considerado que o art. 1.726 do Código Civil prevê a possibilidade de converter a união estável em casamento. Vale dizer, esse atalho está supervalorizado: cria a união estável homoafetiva, que iça do lodo da extrajuridicidade as parcerias gays, mas não só, pois uma vez reconhecidas como união estável, poderão, querendo, torná-las em matrimônio. Traz-se a figura do "atalho" justamente para demonstrar que não é o caminho ideal na sistemática adotada no Brasil, mas uma espécie de remédio, enquanto o Congresso Nacional, lídimo representante da sociedade para a matéria sob análise, não se manifeste.

Fora essa questão, o que realmente se pretende analisar é o discurso da referida decisão, mormente no que toca à fundamentação prestada por aqueles magistrados da máxima instância. Não se quer, por óbvio, questionar o lastro jurídico em si, que certamente foi bastante para sustentar a decisão, mas, sem pretensões exageradas, deseja-se refletir sobre a influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim como de outros diplomas internacionais, nesse desiderato. Ver-se-á que a decisão passa por aquela norma geral e basilar (Declaração da ONU), mas não com a explicitude esperada.

O centro da questão posta à suprema corte repousa na sexualidade, e a análise central era se pessoas do mesmo sexo poderiam conviver more uxorio, estabelecendo família. O debate passou por questionamentos vários, tais como: que diz a legislação doméstica sobre o alcance do termo ‘família’, quanto às suas possibilidades? Em se exigindo diferença de sexo para formar família, ou melhor, em não estando previsto o modelo homoafetivo entre os eleitos pelo legislador constituinte, essas parcerias, realidades fáticas e merecedoras de tutela, deveriam ser emancipadas com base numa sistemática interpretação do texto constitucional, que impediria a discriminação? Se o centro da questão é a sexualidade humana, este fenômeno estaria relacionado à dignidade da pessoa? A presente análise propõe reler esses questionamentos a partir de outras interrogações: em que medida o princípio da dignidade da pessoa serviu de baliza para a decisão? Qual a influência da Declaração dos Direitos Humanos e de outros tratados no foro doméstico, em tratativa desta envergadura?

Pretende-se, portanto, numa perspectiva dedutivo-dialética, proceder a uma (re)leitura desta histórica decisão sob as luzes de normas internacionais constitucionais, entendendo que essa visada da matéria acarretaria, em especial às minorias, mais segurança aos chamados direitos humanos. Às maiorias, as garantias jurídicas são sempre mais viáveis, visíveis e confiáveis, enquanto às minorias, como os homossexuais, são bem-vindas as cláusulas hábeis a promover o direito, como este de conviver intuitu familiae.

2. Direitos humanos: definição e reflexão

Não há uma posição com clare-za meridiana, na doutrina, acerca do alcance e do conteúdo da expressão ‘direitos humanos’. Em verdade, é expressão bem sabida, mas pouco delimitada. Inicialmente fique consignado que todo direito é humano, já que a pessoa humana é causa de toda criação jurídica, ainda que a tutela alcance, por vezes, num primeiro momento, a fauna e a flora. A expressão, entretanto, tem cunho restritivo, no sentido de que tem a pretensão de abarcar e promover determinados direitos, como prioritários da manutenção e da promoção da condição humana.

Direitos humanos, que, também, são chamados de direitos do homem, direitos fundamentais, direitos da personalidade, direitos inatos (Becerra, 1991), seriam a categoria mínima de direitos hábeis a sustentar a condição humana com a dignidade que lhe é própria, tais como o direito ao respeito à vida, o direito à liberdade (em seus mais amplos matizes), o direito à honra e à integridade (física e moral), como ilustra Baez (2011). Quando se arrisca um rol, só pode ser à guisa de exemplo, pois esses direitos são inumeráveis, existindo tantos quantos bastem, numa lista aberta, crescente ao infinito, para escudar a dignidade da pessoa humana.

Nessa direção, Portela (2010, p. 615-616) define os direitos humanos "como aqueles direitos essenciais para que o ser humano seja tratado com a dignidade que lhe é inerente e aos quais fazem jus todos os membros da espécie humana, sem distinção de qualquer espécie", acrescentando que "o fundamento dos direitos humanos refere-se ao motivo pelo qual todas as pessoas, sem distinção de qualquer natureza, são titulares do mesmo rol de...

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