Direitos territoriais dos povos indígenas: Um olhar a partir da experiência brasileira

AutorMadalena Alves dos Santos
CargoGraduanda do 5º ano da Universidade Federal do Paraná UFPR, integrante do projeto Virada de Copérnico e ex-aluna da Unibrasil.
Páginas1-31

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Introdução

O escopo deste trabalho é refletir sobre a propriedade comunal indígena e sua regulamentação jurídica em oposição à propriedade moderna. Para tanto, propõe-se uma análise histórica do desenvolvimento deste instituto a partir do século XIX, notadamente a partir da análise da codificação oitocentista.

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Esta reflexão impõe-se frente à instituição do Estado Democrático e pluralista instaurado pela Constituição Federal de 1988. O modelo unívoco da propriedade moderna não se coaduna com as múltiplas possibilidades de relações de pertencimento contempladas pela Carta Magna. Da mesma forma, os modos efetivos de pertencimento da terra na realidade brasileira não se esgotam no arquétipo moderno de propriedade. Neste sentido, a experiência indígena está a demonstrar a existência de outros modelos proprietários, que exigem a atenção do Direito.

O direito indígena à terra foi contemplado há muito pelo legislador, mas nem sempre da maneira adequada. Ademais, na prática, este direito encontrou pouca efetividade. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, entretanto, o panorama mudou, a partir da instauração do paradigma da pluralidade e do multiculturalismo, além do reconhecimento expresso do direito indígena à terra e à demarcação desta.

O objetivo deste trabalho é vislumbrar os contornos contemporâneos da propriedade indígena, analisando-a comparativamente em relação à propriedade moderna, e a consequente ruptura sofrida por esta a partir do reconhecimento de outras formas de relação de pertencimento.

1 Pressupostos metodológicos para a compreensão da propriedade

Antes de iniciar a dissecação do conceito contemporâneo do instituto da propriedade, insta, primeiramente, identificar as raízes históricas que conduziram a tal acepção. Não se trata, aqui, de proceder a uma retrospectiva cronológica construída com o fim de justificar ou forjar uma continuidade no uso e significado do termo. Antes, pretende-se identificar nas suas rupturas e descontinuidades um sentido compatível com a realidade brasileira, bem como com princípios e regras inseridos no ordenamento jurídico pela Constituição de 1988. Atentemos à advertência que nos faz Ricardo Marcelo FONSECA:

Apesar de boa parte de uma historiografia exagerar nas ‘continuidades’ históricas entre noções jurídicas antigas (sobretudo romanas) e noções jurídicas atuais, o fato é que o jurista em geral e o historiador do direito em particular deve estar muito atento para as profundas descontinuidades que marcam a experiência jurídica passada, a fim de não enxergar na experiência jurídica presente (no caso em exame, a disciplina jurídica da propriedade) como uma atualização de noções jurídicas antigas, devidamente escoimadas de eventuais ‘irracionalidades’ e temperadas com a água benta da ‘ciência racional 2

Para isto, faz-se necessário estabelecer alguns pressupostos metodológicos para o estudo da história do Direito e, particularmente, da propriedade.

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O primeiro passo nessa tarefa é perceber o Direito como fenômeno temporal e local. Significa dizer que apesar das pretensões de atemporalidade dos juristas modernos, o Direito, por estar intrinsecamente ligado ao fenômeno social, está, como a própria sociedade, em contínua metamorfose. Neste sentido, afirma António Manoel HESPANHA que:

A História do direito realiza esta missão sublinhando que o direito existe sempre em sociedade e que, seja qual for o modelo usado para descrever as suas relações com os contextos sociais (simbólicos, econômicos, etc.), as soluções jurídicas são sempre contingentes em relação a um dado envolvimento (ou ambiente). São, neste sentido, sempre locais3.

Apesar da constatação parecer elementar, a tradição jurídica instaurada a partir da Revolução Burguesa pretendeu justamente a construção de um Direito eterno, universal e neutro, o que produziu efeitos muito significativos no tocante ao direito de propriedade, como se verá oportunamente.

O Direito Moderno foi inspirado pela filosofia iluminista, que, a partir do conceito de racionalidade, rechaçando a importância da tradição no medievo, criou a noção de sujeito. Segundo esta corrente de pensamento, o homem é um fim em si próprio e sua principal característica é a individualidade. Sua natureza é a de um ser completo e isolado, e a sociabilidade é mero acessório da individualidade4.

A ideia de sujeito de direito traz implícita a capacidade do ser humano de titularizar direitos e deveres e, consequentemente, participar de variadas ordens de relações jurídicas5. Esta concepção estava sincronizada com as necessidades econômicas da época e operacionalizou as relações de troca e o surgimento do mercado.

Decorrente da figura do sujeito tem-se também a necessidade de proteção do indivíduo frente ao Estado, como expressão da garantia à liberdade. As teorias contratualistas propagavam que este sujeito só poderia ser limitado na medida em que isto fosse imprescindível à convivência em sociedade. Justificou-se, assim, a criação do Estado Moderno e a consequente dicotomia entre a esfera pública e a privada. Eroulths CORTIANO JUNIOR ensina que:

(...) vê-se que a contraposição estado de natureza/sociedade civil vai refletir toda a ideologia da classe que começava a se impor nos domínios do político (...) esta distinção esfera econômica/esfera política representará a emancipação da classe em face do Estado existente. O estado de natureza – no qual todos gozam de autonomia Page 4 religiosa, moral e econômica – reflete a visão individualista da sociedade; no estado de natureza a liberdade e igualdade encontram seu lugar (...) 6 .

A igualdade imputada ao sujeito tem, então, caráter meramente formal, redundando apenas na constatação de que todos podem ser titulares de direitos e, consequentemente, de relações jurídicas de conteúdo patrimonial. A liberdade, por sua vez, restringe-se à liberdade de contratar e impor sua autonomia. O mesmo autor continua afirmando que:

A economia de troca exige, além daquilo que se troca, aquele que troca. A troca pressupõe escolha (entre trocar e não trocar, entre o que trocar e o que não trocar), e escolha pressupõe autonomia (...) A igualdade era fundamental para o desenvolvimento das relações de troca: um espaço de autonomia (ou de decisões) pressupõe igualdade entre os que decidem (...) Trata-se, entretanto, de uma liberdade formal (mas material na medida em que se garante a liberdade de iniciativa aos indivíduos) e de uma igualdade formal. Liberdade e igualdade aparentemente reais7.

A propriedade, neste contexto, significava, além da própria sobrevivência do sujeito, a conquista de sua autonomia, através da troca de bens.

O modelo moderno de propriedade, considerado como extensão do próprio indivíduo, consolidou-se, por tal motivo, como um direito abstrato e simples. Nesta medida, tornou-se o único modelo aceito pelo universo jurídico.

Paolo GROSSI propõe uma reflexão profunda sobre este modelo, para proteger o historiador do direito e o jurista de alguns riscos no estudo da propriedade, quais sejam, o pesado condicionamento monocultural a que estão sujeitos, o caráter absoluto da ideologia proprietária, a abordagem formalista do instituto, bem como a tentativa de reduzi-lo às especificidades da história agrária8.

O primeiro risco consubstancia-se na redução de todas as formas de pertencimento à propriedade. Sérgio Said STAUT JUNIOR ensina que:

A referência ao termo propriedade (especialmente privada) carrega, e não é de hoje, um significado muito específico na história, limitado a uma concepção individualista e potestativa da relação entre homens e bens. A palavra propriedade remete habitualmente a uma forma de apropriação dos bens que parte sempre de um sujeito proprietário e de seu poder exclusivo e soberano sobre as coisas, ou seja, uma perspectiva de propriedade que adquiriu uma posição hegemônica quase que absoluta na Modernidade9.

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Muito embora a propriedade abstrata e simples seja a única reconhecida oficialmente pelo Direito Moderno, a realidade demonstra que existem outras possibilidades de relação entre sujeitos e coisas. São inúmeros os exemplos na experiência europeia, não só na época medieval, e especialmente na realidade latino americana, dentre os quais aquele de que cuida este trabalho, que insistem em contrariar a racionalidade moderna. Estas situações, não obstante encontrem-se por vezes à margem da legalidade, persistem no mundo dos fatos, exigindo que o jurista extravase os horizontes estreitos da propriedade moderna.

Note-se que a “propriedade comunitária”, de que trata este trabalho, não é simplesmente a titularidade de um bem por vários indivíduos simultaneamente. Ela difere da propriedade privada substancialmente, na sua finalidade e forma de utilização. Procurar esgotá-la no sentido moderno do termo “propriedade”, portanto, é cometer um atentado à sua essência.

Destarte, equivocar-se-á aquele que, viciado por um “pesado condicionamento monocultural”, insistir em enxergar todas as realidades concretas sob as lentes do paradigma moderno, uma vez que este é insuficiente para abarcar a totalidade das relações de pertencimento, mormente ante a complexidade da sociedade contemporânea.

Deve também o historiador ser...

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