Segurança Alimentar, Biotecnologia e Política Agrária (Food Safety/Food Security, Biotechnology and Agrarian Policy)

AutorRoberto Grassi Neto
CargoLivre-docente, doutor e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)
Páginas69-87

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1. Introdução: Segurança alimentar, entre quantidade, qualidade e autossuficiência

A produção de alimentos sempre desempenhou função vital no seio das sociedades, que, por sua vez, se mantiveram constantemente preocupadas tanto em garantir a autossuiciência de seus respectivos países no abastecimento do mercado interno, como em assegurar que a oferta de produtos alimentares ao consumidor ocorra de modo suiciente, envolvendo itens sãos e desprovidos de perigo à saúde daquele que vá ingeri-los.

A partir do século XIX, a questão alimentar ganhou nova perspectiva, com o aperfeiçoamento dos métodos de preservação, que haviam se mantido praticamente finalterados ao longo dos séculos. Nesse contexto, ganha particular destaque o desenvolvimento da industrialização das conservas e do congelamento.

A origem recente dos atuais movimentos contra a fome em nível mundial remonta, contudo, à aproximação do desfecho da segunda guerra mundial, quando os governantes passaram a reconhecer a inutilidade em produzir-se maior quantidade de alimentos, se os homens e as nações não estabelecessem mercados capazes de absorvê-los.

O impacto da constatação de que fome e má nutrição encontram na pobreza sua causa principal repercutiu de tal modo na noção contemporânea de segurança alimentar que esta acabou por centrar-se inicialmente na preocupação mundial com o volume e a estabilidade dos suprimentos alimentícios destinados a satisfazer as exigências de cada indivíduo.

Em meados da década de 1990, porém, referida ideia de segurança alimentar recebeu nova dimensão, deixando de corresponder ao mero atendimento de necessidade simplesmente individual para transformar-se em um conjunto de ações de interesse global, destinadas a contribuir para que as pessoas tenham uma vida ativa e saudável.

Procurando abranger todas as dimensões acima relatadas, acreditamos que a "segurança alimentar e nutricional" possa ser enunciada como sendo a situação na qual todas as pessoas, regular e permanente, dispõem de acesso físico, social e econômico a víveres suicientes para o atendimento de suas necessidades básicas que, além de terem sido produzidos de modo sustentável e mediante respeito às restrições dietéticas especiais ou às características culturais de cada povo, apresentem-se saudáveis, nutritivos, e isentos de riscos, assim se preservando até sua ingestão pelo consumidor1.

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Ao abordar-se o tema da "segurança alimentar", uma das questões suscitadas de imediato no intérprete concerne ao próprio alcance da expressão empregada.

Nos idiomas neolatinos mais conhecidos, a palavra "segurança" (português), "sicurezza" (italiano), "sécurité" (francês), "seguridad" (espanhol), "securitate" (romeno), corresponde tanto à ação ou efeito de garantir-se a satisfação de determinadas necessidades, como ao estado, qualidade ou condição de estar-se livre de perigos e de incertezas.

Em todos os idiomas mencionados, uma mesma expressão - respectivamente "segurança alimentar", "sicurezza alimentare", "sécurité alimentaire", "seguridad alimentaria" e "securitatea alimentar?" - é empregada para exprimir tanto a ideia de soberania na produção de alimentos, como a de acesso aos produtos alimentares pela população, ou ainda aquela da inocuidade em sua produção para o meio ambiente ou em sua ingestão pelo consumidor.

Observe-se, todavia, que as discussões são aparentemente circunscritas apenas às línguas neolatinas, uma vez que nos idiomas germânicos ocidentais, como o inglês e o alemão, por exemplo, são empregadas expressões distintas para cada signiicado, de modo a afastar possível confusão a respeito: food security (inglês) e Ernährungssicherheit (alemão), para as acepções concernentes à soberania na produção e à garantia de acesso aos alimentos; food safety (inglês) e Lebensmittelsicherheit (alemão), para expressar a noção de sanidade do produto.

2. Material e métodos

O presente estudo analisa a legislação, doutrina e jurisprudência existentes que sejam relacionadas com o tema da segurança alimentar, de modo a apresentar propostas de modiicações legislativas.

3. Resultados: Estruturas administrativas regulatórias da segurança alimentar no âmbito global e no Brasil

É possível distinguir, atualmente, estruturas administrativas regulatórias da "segurança alimentar", tanto no contexto global como nos âmbitos regional e nacional. Naquele destacam-se a Organização das Nações Unidas

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para Agricultura e Alimentação (FAO), entidade centrada em políticas internacionais de combate à fome e na organização do Codex Alimentarius, e a Organização Mundial do Comércio (OMC), voltada a assegurar o livre comércio mundial.

Em âmbitos regionais, são referências a Food and Drugs Administration (FDA)2e a Autoridade Europeia para Segurança de Alimentos (Aesa)3.

No Brasil, o modelo de regulação da segurança alimentar vem, por sua vez, disciplinado de modo tanto disperso, pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan)4, pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) e pela ação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) e da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

4. Resultados: Princípios incidentes na segurança alimentar

Erigido à categoria de direito fundamental a partir de 2006, o acesso à alimentação adequada vem assegurado no Brasil por princípios de ordem tanto constitucional como legal.

Dentre os primeiros, destacamos o princípio de tutela aos direitos extrapatrimoniais do consumidor, tais como a vida, a saúde, a segurança, o acesso à alimentação adequada e a educação para o consumo. Complementam o rol dos princípios constitucionais incidentes sobre a questão aqueles que orientam a livre concorrência e a proteção ao consumidor, além daqueles concernentes à proteção ao meio ambiente e à função social da propriedade.

Têm natureza legal, por sua vez, os princípios da precaução, da transparência, da rastreabilidade, da responsabilidade objetiva dos fornecedores de gêneros alimentícios e da solidariedade legal na responsabilidade dos fornecedores de gêneros alimentícios.

A eterna busca da efetiva sanidade dos alimentos ganhou, ainda, ferramenta de vital importância com o surgimento de procedimentos administrativos padronizados de controle, dentre os quais se destaca a análise e gestão de riscos pelo sistema HACCP (Hazard Analysis Critical Control Point), proposto no Codex Alimentarius da FAO (CAC/RCP 1-1969, com a redação revista em 04-2003) e adotado tanto pela UE (introduzido pela Diretiva 93/43/CEE e atualmente previsto nos Regulamentos 852, 853 e 854, de 2004) e EUA (Título 21 do Code of Federal Regulations), como pelo Brasil (Portaria 1.428/93, do Ministério da Saúde).

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Spaziani e Cipriani5ressaltam que o conceito-base do sistema pressupõe a existência, em cada processo produtivo, de "alguns pontos ‘críticos’ nos quais é possível, mediante uma ação adequada de controle, evitar ou reduzir a nível aceitável um perigo para a segurança do produto final". O monitoramento da atividade desenvolvida em aludidos pontos críticos do processo permite, por sua vez, que seja assegurado o controle de qualidade do produto final. Para esse im, a acepção que deve ser emprestada à palavra "controle" corresponde à execução de operação destinada a "prevenir, eliminar ou reduzir o perigo".

5. Resultados: Biotecnologia e segurança alimentar

No que concerne ao emprego de novas tecnologias visando ao aumento da produção de alimentos, especialmente no âmbito da agricultura, o tema tem ensejado acalorados debates marcados pela polarização de posições, em especial quanto à conveniência ou não do emprego de técnicas envolvendo transgenia no setor alimentar, conquanto o uso de biotecnologia tenha um alcance muito maior.

De um lado, parcela expressiva dos produtores e companhias transnacionais de tecnologia agrícola, tais como a Monsanto, a DuPont e a Syngenta, sustentam que a criação de cultivares6a partir do emprego de sementes geneticamente modiicadas seria verdadeira panaceia segura contra pragas das lavouras, capaz de assegurar tanto o abastecimento do crescente mercado consumidor, como de alçar o país à posição de potência exportadora de commodities agrícolas.

No extremo oposto, ambientalistas e entidades de consumidores asseveram que o cultivo de variedades de plantas produzidas mediante emprego de técnicas de ingerência humana em sua estrutura congênita básica seria solução inconsequente, que expõe tanto o consumidor como o meio ambiente a riscos desnecessários.

Com a manipulação genética veriicou-se fato que Germanò denominou, com invulgar precisão, "salto da natureza", algo que nunca teria se veriicado naturalmente, mas que ocorreu em razão de o homem ter "inventado" o modus procedendi7.

As empresas produtoras de sementes airmam que, ao cultivar o solo com produto geneticamente modiicado, o produtor reduziria ou...

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