Direito do Trabalho e Desenvolvimento Sustentável: um Diálogo Provável

AutorLuiz Otávio Linhares Renault; Eduardo Simões Neto
Páginas95-104

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A voz do vento... Ninguém sabe o que o vento quer dizer... Quem me faz uma letra para a voz do vento?

Mário Quintana

Introdução

A ONU idealizou e patrocinou a elaboração de um documento que consolidasse os princípios de sustentabilidade do planeta Terra, em 1987.

Naquela quadra da história, a intenção da ONU era instituir uma espécie de declaração que representasse um "código de ética" para o planeta Terra, semelhantemente ao que ocorreu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujos benefícios em prol de toda a humanidade são incontestáveis.

As épocas, os temas, e as circunstâncias entre os dois documentos são diferentes, porém a causa mais significativa idêntica - a centralidade da pessoa humana, num mundo em transformações profundas nas relações entre as pessoas e dessas com a natureza, com o meio ambiente.

Se até então a comunidade internacional havia se preocupado e atuado bastante agudamente contra os horrores da Segunda Grande Guerra, além de instigar a recuperação econômica mundial e a reconstrução de inúmeras cidades europeias, voltando, outrossim, a sua preocupação, basicamente, para a paz, para os direitos e para a dignidade da pessoa humana, a partir do final dos anos oitenta e início dos anos noventa do século passado, outra questão global relevante veio à tona com muita força.

Trata-se da questão ambiental, vale dizer, da sustentabilidade do planeta Terra para que a raça humana e os demais seres vivos tenham um futuro, pouco importando se para nós, nossos filhos, netos, bisnetos etc., isto é, se para a atual ou para as futuras gerações.

Alguns temas que afetam a todos parecem eternos e são tratados com afinco, fruto da dedicação e do trabalho desenvolvido por diversos organismos internacionais. Dentre outras questões, poderíamos citar os direitos humanos, a paz mundial, inclusive a não proliferação de armas nucleares, a democracia, a liberdade de imprensa, a saúde, a fome, a miséria, a desigualdade, o acesso à água potável, à educação, à cultura e à informação, o equilíbrio econômico do mercado transnacional, e a questão social, envolvendo os direitos mínimos dos trabalhadores, mediante a vigilância e a atuação permanente da OIT.

Por seu turno, a questão ambiental tem obtido maior atenção mundial por pressão da sociedade civil, de várias ONGS, dentre as quais se destaca o Greenpeace, e de alguns organismos internacionais, aos quais poderíamos incluir, ainda que timidamente, a Unesco e a OIT, essa última por razões que nos parecem óbvias, uma vez que o ser humano está vinculado à criação, à concepção e à execução de quaisquer bens e serviços, em todos os recantos do nosso planeta. Nada se produz sem a participação direta do homem, embora o capital venha priorizando e precarizando a mão de obra mais barata, pouco importando onde ela esteja.

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Todavia, existe uma forte resistência econômica, isto é, há um embate intenso entre o capital e a cúpula da ONU, assim como com diversos outros organismos nacionais e transnacionais, ONGS, sociedade civil, talvez até um pouco semelhante ao que ocorreu nos séculos XVIII e XIX, entre os trabalhadores e os detentores do capital - a exploração do trabalho humano era evidente e a resistência do capital quanto à melhoria das condições de trabalho e de remuneração era incomensurável. Países economicamente fortes e ricos, como é o caso, dentre outros, dos Estados Unidos da América do Norte e da China, que são os maiores poluidores da natureza e da degradação ambiental, não quiseram se comprometer com medidas urgentes para salvar o nosso planeta, a curto prazo, como se pode verificar dos resultados da Rio+201.

Seja como for, o despertar de uma consciência global talvez tenha sido mais uma grande vitória obtida pela ONU, ao propugnar um documento principiológico de sustentabilidade do planeta Terra, pois, o que se pretendia era que as pessoas tivessem a percepção aguda, um sentimento profundo e o conhecimento de que a produção em alta escala, o consumo exagerado, o lucro a qualquer custo, a crescente e descontrolada emissão de gases efeito estufa com a consequente elevação da temperatura, assim como o desrespeito à flora, à fauna, ao reino mineral e à biodiversidade, associados à poluição dos rios, dos cursos d’água, dos mares e dos oceanos estão colocando em xeque todo o ecossistema e, por conseguinte, a vida em suas diversas formas.

O texto final, denominado de Carta da Terra, ao qual nos referimos, somente foi concluído em 2000, sendo imediatamente traduzido para inúmeros idiomas.

Um dos incontáveis méritos desta Carta consubstancia-se na linha mestra segundo a qual a Terra, simultaneamente, pode ser objeto e sujeito de direito - fala-se da Terra como se fala de uma raça, de uma pessoa humana, assim como de todos os demais seres vivos (flora, fauna e reino mineral - animais, vegetais, ar, água, rios, nascentes, mananciais e cursos d’água, cachoeiras, mares, oceanos, calotas polares, montanhas, florestas, matas, cerrados, mangues, vegetação, micro-organismos, solo, enfim as terras e os céus, todos e tudo), como autênticos detentores de direitos naturais e básicos à existência, à vida e à sobrevivência.

Essa personalização, essa subjetivação da natureza, vale dizer, essa atribuição de titularidade de direitos a todos os bens da natureza2, por assim dizer por projeção da identidade do homem, iniciada pela Carta da Terra e, infelizmente, ainda reconhecida por poucos, em breve estará disseminada em todos os quadrantes e em todos os segmentos da sociedade. Cedo ou tarde, desta vez, o capitalismo e o mercado não conseguirão fazer prevalecer os seus dogmas. E a razão é muito simples. A produção, o consumo e o lucro não salvarão o planeta Terra e, por conseguinte, a raça humana. Contrariando a própria lógica do sistema econômico hegemônico, a diminuição da produção ocorreria como medida primordial. Como as pessoas, a Terra está cansada de ser explorada e de ser sufocada3, dando também mostras de seu esgotamento.

Na real verdade, como se disse, o grande passo foi o despertar de uma consciência em torno de uma temática até então desprezada pelo capital, pela maioria dos países e das pessoas, necessária sendo uma caminhada inversa ao desenvolvimento econômico baseado na produção predatória e a qualquer custo. Esse corte conceptual, vale dizer, esse rompimento com a situação vigente foi captada por Leonardo Boff, que disse:

Hoje nos encontramos numa fase nova na humanidade. Todos estamos regressando à Casa Comum, à Terra: os povos, as sociedades, as culturas e as religiões. Todos trocamos experiências e valores. Todos nos enriquecemos e nos completamos mutuamente (...).4

Outro alerta vem da Carta da Terra, que propõe:

Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro... ou formar uma aliança global para cuidar

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da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida.5

O homem e a natureza se pertencem mútua e reciprocamente, completam-se e se complementam, ungidos pelo mesmo e insubstituível estrondoso sopro divino. O universo é uni-verso que em sua pluralidade exuberante se converte no uno, sem frente nem verso, isto é, sem separação entre o homem e a natureza, posto que unitário em seus desígnios além tempo.

No princípio era o verbo. O verbo ser, no modo imperativo afirmativo e pessoal, que o capitalismo fez, gradativamente, substituído pelo verbo TER, cada vez mais no infinitivo impessoal, sem tempos derivados e sem conjugação condicional. O verbo TER, para os capitalistas, é um verbo defectivo porque não admite nenhuma conjugação completa para a maioria das pessoas...

Ocorre que os recursos naturais são limitados, são finitos e a natureza nem sempre se regenera ou mesmo demora longos ciclos para se reconstituir6. Logo, a vida depende, cada vez mais intensa, superficial e profundamente, daquilo que fizermos e fazemos com o nosso planeta, que tem sido torturado para revelar os seus mais íntimos segredos7 à descontrolada exploração capitalista, cujo lema é a desmedida acumulação de riqueza.

A Carta da Terra possui um preâmbulo, seguido de quatro grandes eixos: Terra, Nosso Lar; A Situação Global; Desafios para o Futuro; Responsabilidade Universal. Dessas ideias irradiam dezesseis princípios, infelizmente, ainda despidos de coerção, mas dotados de significativa influência para a formação de uma consciência universal a respeito do problema, bem como de enorme carga expansionista, interpretativa e integrativa, articulados que estão todas as questões entre si e para além dos próprios texto e contexto com a questão de sustentabilidade ambiental e humana, econômica e social. Eis os princípios: 1) respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade; 2) construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacíficas; 3) assegurar a generosidade e a beleza da Terra para as atuais e futuras gerações; 5) proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial atenção à diversidade biológica e aos processos naturais que sustentam a vida; 6) prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução; 7) adotar padrões de produção consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário; 8) avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover o intercâmbio aberto e aplicação ampla do conhecimento adquirido; 9) erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental; 10)...

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