O Tribunal Constitucional: Elementos e estrutura da separação dos poderes

AutorRodrigo Carneiro Gomes
Páginas71-96

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1 Introdução

O contemporâneo Estado democrático de Direito e a moderna sociedade brasileira do século XXI encontram-se sob a égide da supremacia da jurisdição constitucional exercida, entre nós, pelo Supremo Tribunal Federal, que aborda a quase totalidade dos temas relevantes da atualidade de interesse dos poderes constituídos, de diversos estratos sociais e setores da economia. São abordados e disciplinados temas variados, como liberdades e garantias individuais, progressão de regime em crimes hediondos, privatizações, fidelidade partidária, mandatos eletivos e direitos da minoria parlamentar, por exemplo.

Para Nanci de Melo e Silva,

As garantias constitucionais da jurisdição fornecem dados essenciais para a compreensão dos sistemas constitucionais e processuais, como elementos necessários à configuração da jurisdição constitucional e a garantia efetiva dos direitos inscritos nos sistemas jurídico-constitucionais”, sendo que o “Estado Democrático de Direito não pode ser apenas uma figura de mera retórica. Há que se colocar a segurança e a certeza da justiça em estruturas menos instáveis que as normas jurídicas, mesmo as constitucionais.1

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Decisões definitivas sobre temas polêmicos que permeiam a vida política do país e deixam governantes e altas autoridades da República em sobreaviso são proferidas pelos onze cidadãos brasileiros de notável saber jurídico e reputação ilibada2, ministros da mais alta corte de justiça brasileira. A perfeita e simétrica atuação do Supremo Tribunal Federal tem sua razão de ser, pois “a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Para que isso não ocorra, é preciso que o poder freie o poder”.3

Observa Alexandre de Moraes que é importante estabelecerem-se os três pilares da legitimidade da justiça constitucional, para que se compatibilize o governo da maioria e o controle jurisdicional de constitucionalidade: complementaridade entre democracia e Estado de Direito, composição dos Tribunais Constitucionais e fundamentação e aceitação popular das decisões dos Tribunais Constitucionais. O ilustre jurista dita que:

A questão da legitimidade da justiça constitucional em confronto com a legitimidade da maioria legislativa coloca-se de forma acentuada no campo do controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que se concede a um Corpo de Magistrados poderes para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, afetando a produção legiferante do Parlamento, enquanto representante direto das aspirações populares em uma Democracia representativa.4

Ao redor do mundo, os países adotaram seu próprio modelo de corte constitucional e agruparam-se em torno de dois modelos típicos: o norte-americano e o europeu, com adaptações pontuais à realidade histórica e socioeconômica de cada qual. Nos Estados Unidos, impera o judicial review, que, de acordo com Charles Black, tem duas funções primárias, tais como, o controle da atuação governamental e de sua legitimidade e a fiscalização dos ramos políticos do governo na medida em que a respectiva atividade prevista constitucionalmente é interpretada pela Corte Suprema.5

Para Aziz Huq, da Columbia Law School for the Center on International Cooperation, New York University:

Judicial review is a court’s power to review, and possibly nullify, laws and governmental acts that violate the constitution and higher norms. It is a way to assure that governmental actors respect the constitution and do not use powers granted to them by the constitution to seize illegitimate power. Judicial review is generally the final word by a governmental institution on a law’s validity.6

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No Brasil, vige um modelo híbrido entre o norte-americano (common law, precedentes jurisprudenciais) e o europeu (corte eminentemente constitucional, em estrutura diversa do Poder Judiciário). Para alguns, o modelo de jurisdição constitucional brasileira reuniria o melhor dos dois mundos.

2 A jurisdição constitucional segundo Kelsen

A garantia da jurisdição constitucional tem por fim assegurar o exercício regular das funções estatais e preservar a integridade do ordenamento constitucional, extirpando-se as leis que conflitem com a lei maior, que é a Constituição.

O dogma de intangibilidade parlamentar de Rousseau é afastado aos poucos, segundo Colomer Viadel, da Universidade de Valência, Espanha:

[...] la culminación de este proceso para garantizar la supremacía de la Constitución va a ser el papel de los jueces como vigilantes de la intangibilidad constitucional. Este creciente control constitucional por la judicatura encontrará solo dos escollos, uno insalvable y el otro poco a poco superado. El primero es la doctrina inglesa de la omnipotencia del Parlamento, capaz incluso de juzgar, sin previa ley. El otro está representado por la idea francesa —hija de la Revolución de 1789— de la ley como expresión de la voluntad general o emanación del pueblo soberano. De acuerdo con esta interpretación, como ha señalado Francois Luchaire, la ley era infalible y omnipotente, y por tanto, no era posible el control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes. Pero esta ficción se ha debilitado hasta prácticamente desvanecerse en la actualidad.7

Quando propugnou pela criação de Tribunais Constitucionais, há mais de setenta anos, seguiu-se, em 1929, o famoso debate que Hans Kelsen travou com Carl Schmitt, em que aquele sustentou a guarda da Constituição dever ser deferida a um Tribunal Constitucional, que apreciaria as questões jurídico-constitucionais, realizando a supremacia da Constituição. Kelsen propalava que o ordenamento jurídico se configurava “como uma pirâmide hierárquica de normas, garantindo-se a hierarquia normativa pelo controle da conformidade de normas de grau inferior com as determinantes normativas de grau superior”.

Na explicação do ministro Carlos Mário Velloso, do Supremo Tribunal Federal, com a propriedade que lhe é peculiar,

é que esta é pressuposto de validade e de eficácia de toda a ordem normativa instituída pelo Estado, e uma Constituição, na qual não existia a garantia de anulabilidade dos atos inconstitucionais não é plenamente obrigatória em sentido técnico. Carl Schmitt, a seu turno, recusava a idéia da instituição de uma jurisdição constitucional, porque a decisãoPage 74 que resolve a questão de constitucionalidade teria natureza política. Não caberia, então, a um Tribunal ‘fazer política’, na defesa da constituição. Essa caberia, sim, a um órgão político.8

Cardoso da Costa, citado por Velloso, pontua que essas duas posições exprimem

duas concepções diferentes de Constituição, ou do seu momento essencial e verdadeiramente radical (a uma concepção ‘normativista’ de Constituição, como era a de Kelsen, contrapunha-se uma sua concepção ‘decisionistaunitária’, como era de Schmitt), e, conseqüentemente, do que deva ser a sua ‘defesa’ ou a sua ‘guarda’; como nela se exprimem, também, entendimentos diversos acerca da natureza da ‘justiça’ ou da função jurisdicional.9

Sem dúvida, Hans Kelsen concebe o Tribunal Constitucional como meio de fazer frente ao poder da magistratura de jurisdição ordinária que poderia ditar sentenças contra o texto da lei, valendo-se da qualidade de mediador entre o direito e a “consciência jurídica da comunidade”. Com isso, buscava Kelsen valorizar o texto legal e elevar a Constituição como fundamento de ordem jurídica e, por conseqüência, embasar a criação de um “Tribunal Constitucional”, em que as divergências entre a lei ordinária e a constituição seriam resolvidas na função desse Tribunal como um “legislador negativo”, vedado ao magistrado de jurisdição ordinária promover o controle difuso de constitucionalidade, numa ótica positivista de atividade judicial meramente técnico-jurídica.

Segundo os estudos do modelo proposto por Kelsen, a jurisdição constitucional não se repartiria, cabendo o exercício da jurisdição ordinária legal ao Poder Judiciário e o exercício da jurisdição constitucional privativamente a um órgão próprio e independente, o Tribunal Constitucional, destacando-se que o magistrado de carreira não tem investidura democrática. Também Carl Schmitt diverge quanto à caracterização da atividade de interpretação da Constituição como jurisdicional, pois tal mister seria função legislativa, ao passo que considera de maior relevo a irrecorribilidade das decisões do Tribunal Constitucional.

3 O modelo do Tribunal Constitucional na Europa

A criação de um Tribunal Constitucional advém do pressuposto de que não basta a lei ser produzida por um Poder cujos representantes sejam eleitos pelo voto popular, com mandato concedido pelo povo democraticamente, mas que essa lei esteja em permanente harmonia com a ordem jurídica constitucional.

Para Enterría:

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El Tribunal Constitucional es una pieza inventada de arriba abajo por el constitucionalismo norteamericano y reelaborada, en la segunda década de este siglo (XX), por uno de los más grandes juristas europeos, Hans KELSEN. Su punto de partida es, como se comprende, que la Constitución es una norma jurídica, y no cualquiera, sino la primera de todas, lex superior...

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