Venda de imóveis com reserva de usufruto e regime das reparações ordinárias e extraordinárias o novo mercado da nua-propriedade imobiliária

AutorEduardo C. Silveira Marchi
Páginas59-84

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1. Introdução

Na Itália, nos últimos anos, em anúncios publicitários de venda de imóveis residenciais, tem-se tornado comum o seguinte tipo de oferta:

Via Orsi - Nuda proprietà in palaz-zo signorile, disponiamo di un apparta-mento composto da: ingresso, 2 camere da letto, salone doppio, 2 servizi. Ampia quadratura. Discreto stato. € 335.696,98 L. 650.000.000. tel. 081.57.81.930.1

Appartamento Santa Croce epoca 2o piano soggiorno 2 camere cucina abi-tabile bagno ripostiglio nuda proprietà 80enne € 250.000,00 www.aureli.it tel. 06/70392020.2

Para a mesma espécie de negócio, há, ainda, outra forma de propaganda, dirigida aos futuros potenciais clientes-fornecedo-res das agências de imóveis:

TERZA ETÀ

HAI RAGGIUNTO LA TERZA ETÀ?

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VENDI LA NUDA PROPRIETÀ PER

UNA VITA ECONOMICAMENTE PIÙ SERENA.

La Commerciale Promozioni Immobiliari. Roma, Lungotevere dei Mellini, 44.3

Trata-se do novo mercado da nua-propriedade imobiliária, fundado, como veremos mais além, na figura jurídica da compra-e-venda com reserva de usufruto.

2. O novo mercado e suas características econômico-sociais
2. 1 Razões de seu surgimento

Surgiu ele de dois importantes fenômenos verificados nos últimos anos.

De um lado, a supervalorização dos imóveis residenciais nas áreas mais centrais de algumas cidades italianas, como Roma.

Na "Cidade Eterna", por exemplo, nos bairros melhores e menos distantes, o metro quadrado tem girado em torno de € 6.000, vale dizer, por volta de US$ 9.000, podendo chegar, no caso do centro histórico, até mesmo à vultosa cifra de € 10.000.4 Tal fenômeno, todavia, não se restringe à capital italiana, ocorrendo também em outras importantes cidades daquele país.

De outro lado, o aumento da expectativa da vida humana, com a manutenção da propriedade desses valorizados imóveis em mãos de donos bastante idosos. Para muitos destes, a venda integral (ou mesmo a locação) de seus imóveis nunca representou uma boa solução, por implicar na indesejada transferência de suas antigas residências (no mais das vezes, a ela bastante ligados afetivamente) e conseqüente penosa mudança de vida.

Além disso, vários deles, aposentados, costumam viver em dificuldade, dados os baixos ou defasados valores de suas pensões;5 outros, sem parentes ou herdeiros, mostram-se pouco satisfeitos diante da perspectiva de deixarem estes seus valiosos bens de raiz para o Estado, como herança jacente.

Diante desta inédita situação econô-mico-social, o "velho e sempre novo" Direito Civil ofereceu o remédio perfeito: a venda com reserva de usufruto.

Trata-se de uma original aplicação prática desta última, clássica e conhecida figura jurídica.

Esta nova (na praxe) modalidade de venda pode representar um ótimo negócio não só para idosos proprietários de imóveis - ao permitir-lhes continuar residindo, munidos de total proteção jurídica, em suas antigas moradias, e desfrutar, ao mesmo tempo, da extraordinária valorização de seus imóveis -, como também para os potenciais compradores.

Estes últimos ou são poupadores de longo prazo, desejosos de, no futuro, residir naquelas áreas mais centrais, ou investidores econômicos, ávidos por novas oportunidades de aplicações financeiras e eventual lucro correspondente.

Neles podem-se também incluir alguns pais previdentes, que buscam de antemão garantir uma futura casa à filha ou filho ainda pequenos, adquirindo já em nome deles a nua-propriedade, contando com a normal longa duração do usufruto vitalício.

2. 2 O preço da nua-propriedade

Para a fixação do valor de venda da nua-propriedade, além dos elementos tradicionais de composição deste preço (localização, estado de conservação do imóvel

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etc.), leva-se em consideração, fundamentalmente, a idade do vendedor-futuro usufrutuário. Quanto mais velho for ele, maior será o valor; quanto menos idoso, menor o preço.

Na Itália, para efeitos fiscais (pagamento do imposto de registro para a transferência da propriedade imobiliária), a lei (arts. 46 e 48 do DPRn. 131, de 26.4.1986) estabelece um interessante cálculo para o estabelecimento dos valores separados da nua-propriedade e do usufruto vitalício.

Este parâmetro legal tem sido utilizado, na praxe do novo mercado, como ponto de referência ou base inicial do cálculo para a fixação do preço de venda da nua-propriedade.

Tal cálculo baseia-se em uma tabela com vários coeficientes, derivados de estudos estatísticos da probabilidade de morte de uma pessoa, em correspondência proporcional à faixa etária do usufrutuário e à taxa de juros legais em vigor (ali atual-mente de 2,5%).

Parte-se, nesta tabela, do coeficiente mínimo 38, para idade do usufrutuário entre 0 e 20 anos, seguindo-se o coeficiente 36, para idade entre 21 e 30 anos, coeficiente 34, para idade entre 31 e 40 anos, coeficiente 32, para idade entre 41 e 45 anos, e assim por diante, até chegar ao coeficiente 12, para idade entre 76 e 78 anos, coeficiente 10, para idade entre 79 e 82 anos, coeficiente 8, para idade entre 83 e 86 anos, coeficiente 6, para idade entre 87 e 92 anos, e, finalmente, coeficiente máximo 4, para idade entre 93 e 99 anos.

Multiplica-se, então, o preço inteiro do imóvel pela taxa de juros legais (na Itália, como se disse, de 2,5%, em vigor a partir de 1.1.2004), alcançando-se, assim, o valor do rendimento anual do bem. Em seguida, multiplica-se este valor pelo coeficiente da tabela relativo à faixa etária do usufrutuário, chegando-se, deste modo, ao valor do usufruto vitalício. Por fim, para se estabelecer o valor da nua-propriedade, basta subtrair do preço inteiro do imóvel aquele valor do usufruto.

Assim, por exemplo, no caso de um imóvel de € 100.000, tendo o vendedor-usufrutuário a idade de 76 anos, teremos: € 100.000 (valor do imóvel) x 2,5% (taxa de juros) x 12 (coeficiente da faixa etária do usufrutuário) = € 30.000 (valor do usufruto).

Por conseqüência, o valor da nua-propriedade será de € 70.000, isto é, € 100.000 (valor do imóvel) - € 30.000 (valor do usufruto vitalício).

Em outros termos, nesta hipótese exemplificativa, o valor da nua-propriedade corresponderá a 70% do preço total do imóvel.

Percebe-se, aliás, com base nestes cálculos legais e na tabela de coeficientes, que para um usufrutuário com idade entre 0 e 20 anos, o valor da nua-propriedade corresponderá a 5% do preço total do imóvel; entre 21 e 30 anos, a 10%; entre 31 e 40 anos, a 15%; entre 41 e 45, a 20%, e assim por diante, até chegar, entre 76 e 78 anos, a 70%, entre 79 e 82 anos, a 75%, entre 83 a 86 anos, a 80%, entre 87 e 92 anos, a 85%, e, finalmente, entre 93 e 99 anos, a 90%.

Em contrapartida, no Brasil, como se sabe, para efeitos fiscais (pagamento de imposto sobre transmissão inter-vivos - ITBI), a nua-propriedade (art. 9o do Decreto n. 46.228, de 23.8.2005) corresponde sempre, independentemente da idade do usufrutuário, a 2/3 do valor venal do imóvel, ou seja, 66,66%.6

Por conta de todos estes aspectos, é certo que a figura jurídica em estudo apresenta nuances de contrato aleatório, pois o

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comprador-futuro nu-proprietário pode experimentar uma maior ou menor vantagem econômica, dependendo, inversamente, da menor ou maior longevidade do vendedor-futuro usufrutuário.

No Brasil, este novo ramo de vendas tem todas as condições de também se estabelecer na praxe do nosso mercado imobiliário.

Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, com bairros como, na primeira, Higienópolis, Jardim Paulista e Jardim Europa e, na segunda, Leblon, Ipanema e Copacabana (área, aliás, com o maior número de pessoas idosas por metro quadrado no país), apresentam os mesmos fenômenos e semelhante situação econômico-social daqueles verificados em algumas cidades italianas.

O surgimento deste inédito mercado da nua-propriedade imobiliária oferece ocasião para um reexame da natureza jurídica da alienação com reserva de usufruto, e, principalmente, da questão - ainda, a nosso ver, controvertida e em aberto - relativa às obrigações do usufrutuário, especialmente no tocante às reparações ordinárias.

Representa, também, mais uma prova da sempre relevante utilidade prática do instituto do usufruto, bem como de sua importância econômico-jurídica, ao contrário do sustentado por parte dos autores, que ora vêem nele pouco interesse prático,7 ora limitam sua aplicação apenas às relações familiares e ao seu correlato escopo alimentício.8

3. Natureza jurídica da compra-e-venda com reserva de usufruto

Consiste ela em um tipo de compra-e-venda, isto é, um negócio jurídico a título oneroso,9 em que o vendedor ("reservatário"10 e futuro usufrutuário) transfere ao comprador (futuro nu-proprietário) a nua-propriedade de um bem, reser-

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vando (ou "detractando"11) para si o usufruto.

Assemelha-se, quanto à estrutura jurídica e alguns de seus efeitos, a outro tipo de negócio jurídico, este a título gratuito, muito comum e bastante conhecido da doutrina e da praxe jurídica: a doação com reserva de usufruto, assaz utilizada para a divisão antecipada da herança, com a doação dos bens aos beneficiários (normalmente os filhos) e reserva do usufruto em favor dos doadores (no mais das vezes os pais).

Ambas as figuras - compra-e-venda com reserva de usufruto e doação com reserva de usufruto - apresentam-se como espécies do famoso instituto jurídico da reserva em negócios jurídicos de alienação da propriedade.

Além da possibilidade de ser realizada a título gratuito ou oneroso, a reserva pode ser feita não só...

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