A virada linguístico-pragmática e o pós-positivismo

AutorRachel Nigro
CargoDoutora em Filosofia (PUC-Rio); Mestre em Ciências Jurídicas e Filosofia (PUC-Rio); Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio,
Páginas170-211

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1. Introdução

Este artigo pretende contribuir para o debate jurídico-constitucional contemporâneo através de uma análise da base filosófica que fundamenta uma das teses centrais do chamado “pós-positivismo”. Nesse sentido, aponto a “virada linguístico-pragmática” como sendo a nova orientação da filosofia contemporânea que possibilita a reabilitação da razão prática sobre bases não metafísicas1.

Ao fazer a virada linguístico-pragmática, o pós-positivismo – e as teorias que se inserem dentro desse novo marco filosófico – comprometese com uma filosofia pós-metafísica, mesmo que as características desta nova orientação filosófica permaneçam não problematizadas. O neoconstitucionalismo, por exemplo, é um movimento inserido no paradigma pós-positivista, tal como aponta Luis Roberto Barroso: “O marco filosófico do novo direito constitucional é o pós-positivismo (...) A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriramPage 171caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação”2.

Esse conjunto de reflexões sobre o Direito que, com e contra o positivismo, busca aperfeiçoar o saber jurídico e pensar sua função social, pode e deve ser criticado, uma vez que é um processo aberto, mas não parece-me válido acusá-lo de mero retorno à dogmática jusnaturalista. Se o pós-positivismo compartilha das teses pós-metafísicas de inspiração linguístico-pragmática, então ele insere-se em um novo momento da filosofia da linguagem (e do direito3) que supera as oposições dicotômicas – como a que comanda a distinção entre natural e positivo – ao tratá-las como falsos problemas que não fazem sentido perante uma nova forma de pensar a linguagem.

Portanto, se conseguimos ancorar o pós-positivismo na base pósmetafísica adotada pela pragmática – neste artigo enfocarei a pragmática lingüística do filósofo alemão Jurgen Habermas4 – então parece-me possível defender a reabilitação da razão prática e, consequentemente, a possibilidade de resolver discursivamente casos difíceis. No entanto, esta perspectiva pragmática implica adotar uma nova visão sobre a linguagem e sua centralidade para o pensamento em geral, o que significa tentar pensar sob novas bases as velhas questões da filosofia, o que não constitui tarefa fácil.

A partir da “revolução copernicana”5 finalizada no século XX, a linguagem passa a ser considerada, prioritariamente, uma atividade capaz de moldar a “realidade” e não simplesmente uma representação de fatos e coisas. Como buscarei desenvolver neste texto, esta nova visão da lin-Page 172guagem como ação que vem sendo chamada de “concepção pragmática da linguagem” nos impõe uma nova forma de encarar os velhos problemas jurídicos, como a clássica distinção entre natural e positivo que comanda a Filosofia do Direito da modernidade6.

Nesse novo ambiente de reaproximação entre o direito e a filosofia, onde a filosofia da linguagem ordinária ganha terreno, proponho pensar que um “pós-positivista” digno do nome deve assumir, de um modo ou de outro, as conseqüências da virada linguístico-pragmática. Isto porque, dentre os motivos do pensamento pós-metafísico, a guinada linguística aparece como elemento central que permite, por sua vez, uma nova maneira de situar a razão.

Como escreve Habermas a respeito da centralidade da linguagem para o pensamento contemporâneo:

A linguagem e a realidade interpenetram-se de uma maneira indissolúvel para nós. Cada experiência está lingüisticamente impregnada, de modo que é impossível um acesso à realidade não filtrado pela linguagem. Esta descoberta constitui um forte motivo para atribuir às condições intersubjetivas de interpretação e entendimento mútuo lingüísticos o papel transcendental que Kant reservara para as ccondições subjetivas necessárias da experiência objetiva. No lugar da subjetividade transcendental da consciência entra a intersubjetividade destranscendentalizada do mundo da vida7.

Nesse sentido, a superação do positivismo, tal como pretendida pelo movimento pós-positivista aqui analisado, passa necessariamente por um “pensamento pós-hegeliano solto das amarras que o prendiam aos esboços metafísicos da razão, delineados pela filosofia da consciência”8.

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Isto porque um pensamento que se intitula pós-metafísico encontra-se comprometido com uma análise filosófica da linguagem e com os novos desafios que tal perspectiva apresenta9.

Deste modo, defendo que a intuição central que atravessa a filosofia do direito contemporâneo – marcado pela retomada da linguagem, do discurso e da retórica – é a centralidade da linguagem ordinária na constituição e fundamentação do discurso jurídico, seja para denunciar sua ambigüidade e imprecisão ou enaltecer sua racionalidade obscurecida pelo paradigma cientificista. No entanto, apesar das inúmeras referências à virada pragmática, grande parte da literatura jurídica permanece alheia às consequências que este novo momento da filosofia traz para o pensar jurídico-político.

Com efeito, a premissa subjacente a todos os discursos ditos pós-positivistas e que permanece não tematizada é exatamente a dimensão pragmática da linguagem aberta pela virada lingüística que nos permite reabilitar a razão crítica da modernidade, agora com outra roupagem, comunicativa e discursiva. É exatamente essa dimensão performativa da linguagem que pretendo aqui ressaltar em conexão com o novo paradigma pós-positivista.

Ao subordinar o pós-positivismo à virada lingüístico-pragmática, pretendo acentuar que a reabilitação da razão prática10 – possibilitada pela pragmática universal habermasiana11 – é uma conseqüência da valoPage 174rização da dimensão performativa da linguagem em geral. Considerando a influência da teoria do discurso no pensamento jusfilosófico contemporâneo, proponho uma leitura da obra Verdade e Justificação, que reúne os escritos filosóficos mais recentes de Habermas12, como uma comprovação da influência da dimensão performativa/comunicativa da linguagem para a fundamentação da nova racionalidade prática – a razão comunicativa – que, por sua vez, possibilita a justificação do discurso jurídico contemporâneo conhecido como pós-positivismo13.

No entanto, pretendo destacar que, para além da inevitável inspiração kantiana, onde a noção de razão prática nos remete ao “mundo das normas” e à capacidade racional de estabelecer regras para a ação humana, a razão prática habermasiana aponta para o campo da intersubjetividade, da comunicação e da linguagem. Desse modo, a razão prática que deve ser resgatada, segundo Habermas, é a razão comunicativa cujo ambiente próprio é a linguagem, especialmente na sua forma discursiva. Assim, a partir de 1970, carregando a herança da crítica frankfurtiana, Habermas opera uma mudança significativa no enfoque da teoria crítica ao fazer a virada comunicativa e trazer para primeiro plano as discussões acerca da razão prática, ou seja, de um alargamento do campo da racionalidade.

Mesmo considerando Habermas um herdeiro direto da Escola de Frankfurt, uma vez que desenvolve os grandes temas da teoria crítica, como a denúncia de um mundo crescentemente administrado e a fidelidade ao conceito iluminista de maioridade, Habermas também realiza uma ruptura com o pensamento de Adorno14, sobretudo no tocante aoPage 175conceito de razão. Com efeito, Habermas pretende resgatar a esperança no projeto moderno e na força emancipatória da razão. Mas agora, trata-se de uma razão intersubjetiva, dialógica, fonte de uma nova racionalidade discursiva calcada no poder comunicacional. Como coloca Cittadino, “ainda que a modernidade tenha sucumbido diante do Holocausto, não se pode esquecer que o compromisso moderno com a autodeterminação e com a auto-realização pressupõe a capacidade dos indivíduos de se apropriarem criticamente de sua história”15. E para que o passado possa se tornar fonte de aprendizado, ou seja, para que possamos refletir sobre as tradições que fracassaram e efetivamente aprender com a história, é preciso apostar no vigor da razão crítica, para além da razão dominadora e reificante que Adorno e Foucault criticam com toda justiça16. A nova razão crítica é agora intersubjetiva, comunicativa e discursiva, capaz de filtrar tradições e de romper com os particularismos, visto que ancorada na interação intersubjetiva e na concepção pragmática da linguagem.

Nesse sentido, a nova racionalidade comunicativa apresentada por Habermas pode ser considerada uma tentativa de responder aos críticos da modernidade sem abandonar a inspiração universalista do Iluminismo, sobretudo sem abandonar o compromisso com o poder transformador da reflexão. Mas a pragmática habermasiana também promove um desenvolvimento das teses do segundo Wittgenstein e de outros filósofos analíticos permitindo, segundo Danilo Marcondes, uma “re-introdução da problemática da filosofia analítica em outra chave17.

Se a linguagem é uma forma de ação no real, uma prática social concreta, então espera-se que a estrutura da interação social reflita-se na própria linguagem. Nesse sentido, desde 1968, em seu artigo “Trabalho e Interação”, bem como na primeira parte de Conhecimento e Interesse de 1973, Habermas busca uma superação da filosofia transcendental kan-Page 176tiana e do pressuposto da identidade do Eu como unidade originária da consciência transcendental. Contra essa visão metafísica, lança mão dos escritos do jovem Hegel que propõe uma concepção segundo a qual a identidade da consciência é entendida não como originária, mas como resultado de três dialéticas: da representação; do trabalho; da luta pelo reconhecimento ou da vida moral. Todas elas são perpassadas pela linguagem. Assim, a linguagem sofre uma redefinição e passa a...

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