Xenotransplantes no direito penal médico: uma análise do bem jurídico protegido

AutorDenise Luz
CargoAdvogada
Páginas6-14

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1. Introdução

O presente trabalho objetiva uma aná-lise ético-jurídica, sob o olhar do direito penal, quanto ao uso de xenotransplantes como alternativa no tratamento de doenças. Devido à complexidade do tema, que envolve setores multidisciplinares do conhecimento e exige uma avaliação ampla quanto a diversas normas nacionais e internacionais que se entrecruzam, optou-se por delimitar o estudo aos aspectos diretamente relacionados aos xenotransplantes e que mais despertam debates nos meios acadêmico, científico e até leigo.

Por isso, inicia-se com uma narração dos aspectos técnicocientíficos que justificam a preocupação. Posteriormente, passa-se para a análise das questões éticojurídicas que parecem ter maior apelo ou ressonância em termos mundiais, consistentes no uso de animais – dignidade animal. Nessa etapa, procura-se enfrentar também questões pertinentes ao direito criminal especificamente. Ao final, lançam-se, então, as “considerações finais”, preferindo-se tal denominação em substituição a “conclusões”, por entender-se que o presente trabalho não ambiciona encerrar o debate, mas apenas contribuir para o desenvolvimento do tema.

O texto contará com passagens em língua estrangeira, algumas vezes traduzidas, outras não. Preferiu-se manter o texto na língua original para garantir fidelidade ao seu conteúdo, que poderia, eventualmente, sofrer alterações de sentido em razão da tradução. Esta opção justifica-se com maior relevo nas temáticas técnico-científicas que possuem linguagem própria e são, na maioria das vezes, estranhas aos operadores do direito.

2. O estado da arte técnicocientífico em matéria de xenotransplantes: uma abordagem geral

O transplante de órgãos representou um importante avanço na medicina e passou a permitir o prolongamento da vida humana, assim como a melhoria da qualidade de vida de pacientes acometidos por doenças graves que levam à falência total ou parcial de órgãos vitais, ou à destruição de células e tecidos.

Os transplantes de órgãos, geralmente, são realizados quando não há mais outra opção viável para o prolongamento da vida, principalmente porque não há do-adores em quantidade suficiente para atender à demanda, o que impõe rígidos requisitos de elegibili-dade. Há restrições legais, morais e técnico-científicas que restringem a doação de órgãos feita por pessoas vivas. Já a doação de órgãos por doador sem vida encontra, ainda, obstáculos de natureza técnica como, por exemplo, o tempo para retirada após a morte, já que a autorização há de ser dada, muitas

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vezes, por familiares quando ainda estão sob o impacto da notícia da recente perda.

Além de ser um método cientificamente viável, o transplante é considerado um procedimento de baixo custo, se comparado a outros procedimentos, o que o torna do ponto de vista econômico e no conjunto do sistema de saúde, público e privado, uma opção recomendável. Isso sem falar na ponderação custo-benefício para o paciente no que tange aos resultados terapêuticos obtidos1.

Diante da escassez de órgãos humanos para realização de alotransplantes, aquele realizado entre diferentes indivíduos da mesma espécie, cientistas vêm buscando métodos alternativos para suprir a demanda, sobretudo porque é elevado o número de pessoas que morrem enquanto aguardam a realização de transplante, o qual depende, muitas vezes, apenas da disponibilidade do órgão.

Nesse contexto, a realização de xenotransplantes mostrou-se uma alternativa plausível, os quais são definidos como o transplante de células, tecidos e órgãos de animais não humanos para seres humanos2.

Algumas tentativas de xenotransplantes foram feitas em âmbito de experimentação terapêutica3, mas nenhuma delas teve o sucesso desejado. Algumas dessas experiências que se tornaram referências no meio científico, não pelo sucesso do empreendimento, mas por constituírem marcos históricos de sua realização, são o caso de Saint Petersburg e o de Baby Fae.

No caso de São Petersburgo4, um homem de 35 anos de idade recebeu o fígado de um babuíno de 15 anos de idade no verão de 1992 em São Petersburgo, na Rússia. O receptor sofria de hepatite-B e estava infectado pelo vírus HIV havia pelo menos cinco anos. Os médicos temiam que o alotransplante tradicional não lhe servisse, porque o órgão transplantado poderia ser atingido pela hepatite. Por outro lado, acre-ditava-se que os babuínos seriam resistentes a essa doença.

Apenas cinco dias após o transplante, o paciente estava apto a comer e caminhar e, após um mês, ele deixou a unidade
de tratamento intensivo. Por outro lado,
ele sofreu várias infecções, inclusive
renais, que necessitaram tratamento.

Dois meses após a
cirurgia, o paciente
voltou a ser internado por estar com icterícia e duas semanas depois faleceu.

Os médicos atribuíram a morte a uma
infecção que havia
atingido seu cérebro. Aparentemente, o HIV não teria contribuído para a morte. Na autópsia, o fígado transplantado apresentava-se saudável, mas os médicos não puderam descartar eventual rejeição ao órgão transplantado como causa da morte. O resultado da autopsia também provocou especulação de que o fígado babuíno seria meta-bolicamente inapto para funcionar em humanos.

O babuíno que serviu de fonte para o transplante provinha de uma colônia de babuínos operados pela Southwest Foundation for Research and Education, no Texas. O babuíno seria portador de doenças e os pesquisadores russos não teriam informado à fundação mexicana de que pretendiam usá-lo para xenotransplante e, por isso, não houve preocupação por parte da fundação na entrega de um babuíno livre de viroses. De fato, o macaco utilizado estava infectado com diversos vírus comuns entre seres dessa espécie. Segundo vários cientistas questionados naquela época, não existiam exames capazes de identificar diver-sas viroses presentes em primatas.

Evidentemente, a realização desse xenotransplante exigiu a morte do babuíno que, apesar de contar com alguns vírus próprios da espécie, apresentava-se saudável e jovem. Tal situação provocou debates quanto ao aspecto ético na utilização do animal.

O propósito de realizar esse xenotransplante foi revisado e aprovado pelo University of Pittsburgh´s Institutional Animal Care and Use Committee, sob o fundamento de que sofrimentos causados aos animais são justificados diante de procedimentos com potencial contribuição para a saúde humana e avanço do conhecimento científico.

O caso Baby Fae se deu no Loma Linda University Medical Center em 1984, quando médicos transplantaram o coração de um babuíno em um paciente pediátrico que sobreviveu vinte dias após a cirurgia. O transplante de São Petersburgo teria sido baseado neste caso precedente5.

PASSOU-SE A ADOTAR A TÉCNICA DE INTRODUZIR GENES HUMANOS EM PORCOS, MODIFICANDO-OS GENETICAMENTE, A FIM DE MINIMIZAR O RISCO DE REJEIÇÃO

O caso Baby Fae desencadeou um largo e polêmico debate sobre questões éticas. Um dos pontos questionados foi a utilização de um bebê recém-nascido em um experimento tido como não terapêutico6, já que não traria real benefício ao paciente e isso já era de conhecimento dos cientistas antes mesmo da realização da experiência. Também foi amplamente discutida a legitimidade de se sacrificar um babuíno saudável para

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um experimento cujo insucesso já era previsto7.

Tem-se como registro histórico que o caso de maior sucesso se deu no início dos anos 60, quando um paciente recebeu um rim de um chipanzé. Esse paciente sobreviveu nove meses8.

O maior obstáculo para os xenotransplantes diz respeito à rejeição do órgão transplantado pelo organismo receptor. Mesmo no alotransplante, de humano para o humano, há risco de rejeição, porque o sistema imunológico do receptor irá reagir e atacar o
organismo estrangeiro como meio
de defesa. Se a resposta imunológica
for extrema, haverá
rejeição do órgão
e o transplante não
terá sucesso. É por
isso que se busca
realizar o transplante quando houver
maior compatibili-dade entre doador e receptor.

De qualquer forma, mesmo que exista compatibilidade entre doador e receptor, será necessário, em qualquer caso, o uso de drogas para subsidiar a resposta imunológica do organismo receptor, o que tende a reduzir a capacidade de defesa do sistema imunológico e torná-lo mais suscetível de contaminação por germes patogênicos.

O risco de rejeição no caso de xenotransplantes é ainda maior do que nos alotransplantes, havendo inclusive risco de “rejeição aguda” que pode até mesmo destruir o órgão transplantado, o que exige o uso intenso de drogas mais pesadas.

A utilização de animais de uma mesma ordem zoológica não gera rejeição aguda. Essa foi a razão por que os cientistas preferiram usar primatas nas experiências relata-das. Além disso, há semelhanças anatômicas e funcionais entre as espécies. Ocorre que o uso de primatas traz consigo maiores riscos de transmissão de doenças infecciosas para o receptor (como o vírus HIV, presente também nos primatas) já que há doenças comuns entre aquela e a espécie humana. Além disso, há dificuldade de criação dos primatas em cativeiro, lentidão na reprodução e outros fatores que dificultam sua adoção em larga escala para fins de transplante. Além disso, ocorrem objeções em decorrência da proximidade filogenética com os seres humanos9.

Esses complicadores levaram os cientistas a envidar esforços para viabilizar a utilização de outras espécies animais, sobretudo que não gerassem tanta polêmica quanto aos aspectos éticos. A opção centrou-se no uso de porcos como fonte de órgãos, por várias razões. Dentre elas, o fato de serem animais largamente utilizados para satisfação das necessidades humanas, de modo que despertaria menos resistência por parte da sociedade e de entidades defensoras dos animais, já que sua criação para o...

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