O microempreendorismo em questão: elementos para um modelo alternativo

AutorLuiz Inácio Gaiger - Andressa da Silva Correa
CargoProfessor Titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos - São Leopoldo, RS) - Mestranda em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Grupo de Pesquisa em Economia Solidária
Páginas205-230

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Luiz Inácio Gaiger

Andressa da Silva Correa

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Introdução

As considerações apresentadas neste artigo traduzem alguns dos resultados do projeto de pesquisa Microempreendedorismo e Associativismo em Países de Desenvolvimento Periférico, desenvolvido em parceria entre o Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, São Leopoldo/RS), o Centro de Estudos Sociais (CES, Coimbra) e o Cruzeiro do Sul – Instituto de Investigação para o Desenvolvimento José Negrão (ICS, Maputo). O objeto focalizado pela pesquisa diz respeito ao empreendedorismo praticado por trabalhadores associados em pequena escala, formalmente ou tacitamente, no tocante às peculiaridades das organizações econômicas correspondentes e ao modo como a associação e a cooperação modelam e potencializam a gestão empreendedora.1

As peculiaridades nacionais e os respectivos estados de conhecimento sobre o tema conduziram as pesquisas empíricas a assumirem focos ligeiramente diferentes em cada país. Em Portugal, a questão principal relacionouse a práticas e dispositivos de cooperação latentes nas micro e pequenas empresas e nos pequenos negócios informais, buscandose discernir os caminhos que tais elementos propiciam em direção a arranjos formalmente associativos. Em Moçambique, buscouse de identificar condutas empreendedoras latentes ou explícitas no interior das organizações econômicas familiares e comunitárias, nas quais predominariam relações de comensalidade (RAZETO, 1990), distintas das relações de cooperação, mas igualmente orientadas por princípios de reciprocidade.

No Brasil, a análise esteve centrada em dois âmbitos distintos. De um lado, o empreendedorismo de pequeno porte existente em empresas individuais quanto ao regime jurídico e de gestão. Sua principal expressão empírica, do ponto de vista das práticas, é a micro e pequena empresa; do ponto de vista da concepção e da ação promocional, o “modelo SEBRAE”. De outro lado, o empreendedorismo de pequena escala desenvolvido em organizações

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econômicas coletivas quanto à propriedade e à gestão. Nesse caso, a delimitação empírica recaiu sobre os empreendimentos registrados pelo primeiro Mapeamento Nacional da Economia Solidária, compreendendo grupos informais, associações e cooperativas. Do ponto de vista conceptual e promocional, não existe aqui um modelo de referência, mas ações variadas de apoio e incubação, por vezes identificadas com as novas “tecnologias sociais”.

Esses dois âmbitos de análise empírica corresponderam a procedimentos específicos. A pesquisa sobre o microempreendedorismo individual foi realizada principalmente com base em fontes secundárias, tais como os levantamentos sobre micro e pequenas empresas, o perfil do microempreendedor e a economia informal, com destaque para os estudos do próprio SEBRAE e do IBGE. Um estudo sistemático em fontes primárias foi realizado em documentos e em material audiovisual do SEBRAE, alguns de natureza institucional e outros divulgados em sua órbita, para fins de difusão do modelo e de orientação didáticopedagógica para seus instrutores e seu públicoalvo. Esses estudos tiveram por fim apreender a realidade das MPE e dos empreendedores de pequeno porte, analisar a concepção predominante nesse campo e, tanto quanto possível, inferir elementos teóricoconceituais válidos para uma compreensão do microempreendedorismo adequada à realidade dos setores populares, segundo uma perspectiva de fortalecimento e de superação de seus condicionantes estruturais.

No âmbito dos empreendimentos associativos, a investigação apoiouse em fontes secundárias e primárias: as primeiras, disponibilizadas pelo SIES2 (Sistema Nacional de Informações sobre a Economia Solidária), no qual se encontram os dados do Mapeamento; as segundas, através da pesquisa qualitativa em empreendimentos selecionados em três regiões distintas do Estado do Rio Grande do Sul, em segmentos econômicos e em formas de organização típicos

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da Economia Solidária. Através de visitas à região Central do Estado (Santa Maria), da Produção (Passo Fundo) e Metropolitana (Porto Alegre), dez empreendimentos foram examinados. Não obstante o número restrito de casos, a vantagem dessa opção residiu no fato de se tratarem de experiências já examinadas em pesquisas qualitativas anteriores (1993, 1997 e 2001), sobre as quais se dispunha de um acervo considerável de informações e, portanto, da possibilidade de comparar dados ao longo do tempo, lançando mão de uma perspectiva de análise longitudinal. Entre os dez empreendimentos, urbanos e rurais, contamse grupos informais, associações e cooperativas, com atividades econômicas principais nos setores de produção agroecológica, comercialização, reciclagem, alimentação, confecções e artesanato. Análises comparativas mais amplas foram propiciadas pelo rol de 48 iniciativas pesquisadas anteriormente, com propósitos e metodologia semelhantes (GAIGER et al., 1999; GAIGER, 2006).

A pesquisa de campo teve como objetivos identificar as situações de adoção de formatos coletivos e seus respectivos graus de desenvolvimento e, de outra parte, avaliar os fatores individuais subjacentes a tais formatos, mensurando diante deles o diferencial representado pela gestão coletiva e pela cooperação econômica. Dessa forma, buscouse discernir os vetores constitutivos do microempreendedorismo associativo, em vista das questões de fundo problematizadas pelo projeto de pesquisa.

Em resultado das investigações precedentes sobre o tema, tevese como ponto de partida que os empreendimentos associativos se valem – ou se podem valer – de dinâmicas de gestão potencialmente privilegiadas para o desenvolvimento do empreendedorismo, assentes na cooperação no trabalho, em decisões coletivas, no compartilhamento de conhecimentos e na confiança em um projeto comum; portanto, em seus ativos supraindividuais e relacionais. Por outro lado, para serem funcionais, essas particularidades precisam ser conjugadas a uma gestão estratégica, fundamentada em conhecimento e em ferramentas adequadas às diferentes dimensões da organização coletiva, irredutíveis ao plano econômico e à racionalidade determinada pelo interesse próprio.

Dessa linha de argumentação decorre inevitavelmente um questionamento fulcral ao conceito paradigmático de “empreende-

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dorismo de oportunidade” (SCHUMPETER, 2006). Com efeito, em sua raiz tais investigações sobre as relações entre o empreendedorismo de pequena escala e o associativismo têm como propósito proceder a uma revisão crítica sobre o tema. Não obstante, foge à sua intenção enveredar por um padrão único de êxito na ação empreendedora, inteiramente contraposto ao modelo dominante. Mais vale sublinhar os aspectos da gestão empreendedora que incorporam a crítica aos limites e distorções do modelo convencional, respeitando, outrossim, aqueles fundamentos ou diretivas em acordo com as condições sociais em que o ato de empreender se materializa. Como se pondera, em conclusão de um amplo estudo sobre o microempreendedorismo realizado em Portugal:

Mais do que seria legítimo admitir, parece haver quadros [da administração pública] que ignoram, ou aparentam ignorar, os estudos que sustentam que o empreendedorismo, enquanto traço comportamental dos indivíduos, é contingente, no duplo sentido em que não se trata de um “gene” ou qualidade inata duradoura e em que se restringe a certas actividades e a algumas fases da vida pessoal. Ou seja, o que é preciso não é tanto um perfil empreendedor, mas muito mais, por exemplo, equidade no trato dos préempresários (isto é, acabar com os casos concretos de dois pesos e duas medidas) e muito mais acção e obras. (...) Tratase de apurar protótipos de inovação social, tais como mecanismos de transição entre culturas de grupo distintas (da informal à formal e da académica à empresarial; da cultura de gestão comum à da de inovação, pelo menos a melhoria incremental permanente), bem como polir regimes alternativos de apoio a projectos empresariais, designadamente para gente na mó de baixo da azenha social. (PORTELLA et al., 2008, p. 243).

Assim, reconhecer a existência de padrões de empreendedorismo que não compartilham os atributos do modelo típico não implica a análise em separado dessas realidades. Convém, preferencialmente, tratálas como processos interligados suscetíveis de conduzir a variantes ou a outros modelos, o ponto de interesse consistindo em examinar as razões desses afastamentos e aproximações, bem como seus efeitos sobre as iniciativas de pequeno porte.

O empreendedorismo tem sido tematizado por uma vasta literatura. Convém por isso esclarecer que esse texto não pretende

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escrutinar as visões predominantes e suas principais derivações, contendo nesse sentido apenas remissões pontuais a alguns autores de referência3. Mesmo entre as principais correntes teóricas, não há uma definição simples e isenta de controvérsias, tampouco é possível inferir uma concepção una, pois a assimilação das obras precursoras ocorreu conforme pressupostos distintos dos seus continuadores, inclusive sua definição de “economia”. Ademais, houve um alargamento gradativo do conceito, extrapolando o campo econômico para a área social, política e institucional, nas quais o empreendedorismo veio a designar o exercício de um papel motor na implantação de projetos de interesse comum ou na reconfiguração das instituições (FERREIRA, 2005).

Da mesma forma, não se pretende adentrar os aspectos empíricos e metodológicos da pesquisa antes mencionada e dos estudos anteriores que confluíram para as tomadas de posição apresentadas a seguir. Os limites de espaço requerem um tratamento especialmente conciso quanto aos traços definidores do padrão convencional de empreendedorismo...

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